quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Duas mulheres se encontram em uma caverna mineira: o Brasil descobre suas remotas origens.





O encontro de duas mulheres nas entranhas das cavernas mineiras marcou a História da ciência mundial e o Brasil pôde conhecer suas origens mais remotas. Cerca de 11 mil e 500 anos as separavam. Uma precisava da outra para ganhar vida, identidade e se revelar ao mundo. A outra ganhou com a primeira notoriedade, satisfação profissional e maior respeito da comunidade científica.

Uma delas é Luzia, mulher que viveu em MG há aproximadamente 11 mil e quinhentos anos. Pertencia a um grupo nômade de caçadores-coletores que fisicamente assemelhavam-se aos aborígines africanos e australianos. Morreu com cerca de 20 anos possivelmente por um acidente ou ataque de animal. Luzia não foi enterrada segundo o ritual de seu povo. Seu corpo caiu ou foi arremessado em uma cavidade natural protegida na caverna futuramente conhecida como Lapa Vermelha IV, nos arredores de Lagoa Santa. Na época, a seca e o frio (cerca de 5 graus abaixo da temperatura atual) tornavam essa região inóspita e o povo de Luzia estava só de passagem. Coberta por 11 metros de sedimentos depositados ao longo dos séculos, Luzia descansou até ser encontrada pela equipe chefiada pela segunda mulher: Annette Laming Emperaire.

Annette era filha de diplomatas franceses e nasceu em São Petersburgo em 1917, poucos dias antes da Revolução Russa. Retornaram para a França onde graduou-se em Filosofia e especializou-se em Arqueologia. Durante a Segunda Guerra Mundial era professora e fez parte da Resistência, movimento que lutou contra a ocupação francesa pelos nazistas. Foi pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique da França e se dedicou à Pré-História, especialmente ao estudo da arte rupestre da Europa Ocidental. As descobertas sobre a antiguidade da ocupação humana em Lagoa Santa que começaram com os estudos do naturalista dinamarquês Peter W. Lund no século XIX motivaram Annette a pesquisar por aqui.

Suas primeiras incursões ocorreram em 1971, mas só ganharam corpo quando se formou a Missão franco-brasileira patrocinada pela UNESCO, Ministério de Assuntos Estrangeiros da França e Museu Nacional entre 1973 e 1976. A missão tinha o objetivo de aprofundar conhecimentos já analisados por Peter Lund, inventariar sítios arqueológicos e analisar pinturas rupestres compreendendo seus significados.
Exploraram dezenas de sítios arqueológicos, mas na Lapa Vermelha IV realizaram sua grande descoberta: a ossada de Luzia, o esqueleto humano mais antigo das Américas.
Annette não teve tempo de realizar grandes publicações sobre sua descoberta, pois faleceu em 1977. Assim como Luzia, teve sua vida interrompida por trágico acidente. Seu trabalho foi posteriormente finalizado e publicado por seus assistentes. Annette é um marco na Arqueologia Brasileira, pois além da descoberta que mudou o olhar científico para a pré história americana, foi pioneira nas datações radiocarbônicas para sítios arqueológicos e estudos modernos dos sambaquis e pinturas rupestrres brasileiras. Foi fundamental na formação das novas gerações de arqueólogos brasileiros.

Após ser resgatada das profundezas da caverna mineira por Annette e sua equipe, Luzia foi novamente esquecida. Desta vez em uma das gavetas no acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Só ganhou fama internacional quando foi objeto de estudo de pesquisadores da USP, sobretudo do Prof. Walter Neves. A reconstituição de sua face ganhou visibilidade internacional e a teoria aventada por Peter Lund e defendida por importantes pesquisadores brasileiros entrou na pauta de debates internacionais: o povo de Luzia coexistiu com a megafauna primitiva (como preguiças gigantes, tigres dentes-de-sabre) e pertencia a um grupo distinto da raça mongólica que deu orígem aos indígenas americanos e ocupou a América muito antes do que se supunha; esses grupos distintos entraram no continente pelo estreito de Bering e a predominância da população com características mongólicas só ocorreu em momentos mais tardios da história humana no continente.

Desde sempre o ser humano se pergunta de onde veio. O encontro de Luzia e Annette nos possibilitou caminhar um pouco mais na busca dessa resposta, ajudando-nos a conhecer melhor nossas origens mais remotas.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Arnaldo Marchesotti: vendo o mundo através da música.



Adoro biografias históricas. Elas nos possibilitam compreender as singularidades do personagem biografado à luz de seu contexto histórico. O relato de uma trajetória particular – seja de um sujeito anônimo ou excepcional – pode ser um ponto de partida para o desvelamento da trama sócio-cultural de sua época. Farei, aqui, uma brevíssima biografia de um músico que nasceu na Itália e viveu seus últimos anos em Lagoa Santa\MG. Um homem que transpôs – com garra e humor – os obstáculos e desafios que a vida lhe oferece.

Arnaldo Marchesotti nasceu em Como, pequena cidade nos arredores de Milão, no natal de 1916. Seu pai, Ricardo, era um especialista em montagem e conserto de motores e bombas hidráulicas e foi combatente na I Guerra Mundial. Sua mãe, Ines, teve 4 filhos e todos acreditaram que a situação familiar melhoraria com o fim da guerra. No entanto, o pior ainda estava por vir: a Gripe Espanhola e o Fascismo.

A Gripe Espanhola foi uma variação da gripe comum que se tornou um inimigo ainda mais assustador que o exército adversário. Matou mais de 30 milhões de pessoas em dois anos. As primeiras notícias da doença apareceram na Espanha em 1918, mas não se tem a confirmação de que tenha surgido neste país. A doença se disseminou rapidamente pelo mundo, cerca de um terço da humanidade a contraiu e pegou em cheio a família Marchesotti.

O velho Ricardo foi quase desenganado, a filha Ângela ficou com deformação nos membros inferiores e o caçula Arnaldo perdeu totalmente a visão aos 18 meses de vida. A família ainda se recuperava do golpe, agradecendo pela vida de todos, quando veio a perseguição política.

O Fascismo, doutrina totalitária que surgiu na Itália em 1918, ganhava terreno com a chegada de Mussolini ao poder em 1922. Ricardo se opunha ao regime, teve seu local de trabalho incendiado e passou a sofrer cada vez mais perseguições. Resolveu, então, deixar a Itália e mudar com a família para o Brasil, onde um de seus irmãos fundara uma fábrica de tecidos. Havia, porém, um empecilho: Arnaldo encontrava-se internado no Instituto de Cegos de Milão desde os 3 anos e a família temia que, no Brasil, ele não tivesse oportunidades de estudo. Decidiram partir e deixa-lo na Itália até se certificarem da existência de escola especializada para cegos no Brasil. A família Marchesotti desembarcou no porto de Santos em 1926, mas Arnaldo ficou internado em Milão.

No Brasil havia duas escolas para cegos de grande prestígio: o Instituto Benjamim Constant no Rio de Janeiro e o Instituto São Rafael em Belo Horizonte. Optaram por Belo Horizonte devido à qualidade da escola e à presença do professor de música Pedro de Castro. Arnaldo já era considerado um grande talento musical e a família vislumbrava um futuro promissor para o caçula. Ines voltou à Italia para busca-lo e, após algum tempo em São Paulo, a família Marchesotti mudou-se para a jovem capital mineira.

A partir daí, Arnaldo escreveu sua própria história. Continuou seus estudos musicais de piano, aos 9 anos se apresentou no Teatro Municipal de São Paulo e aos 11 anos no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sempre com grande repercussão na mídia ressaltando sua genialidade. Em Belo Horizonte, concluiu seus estudos no Instituto São Rafael, em 1932, e também no Conservatório Mineiro de Música. Foi o primeiro pianista cego a diplomar-se no Brasil como foi amplamente divulgado pela imprensa da época. Arnaldo casou-se com a jovem Letícia e proveu o sustento dos seus sete filhos com sua arte.

Arnaldo Marchesotti teve uma carreira artística bastante intensa. Apresentou-se em mais de 150 cidades brasileiras, todas as capitais, Estados Unidos e América Latina. Realizou constante atividade radiofônica tocando na Rádio Inconfidência desde sua fundação até aposentar-se em 1968; na Rádio Ministério da Educação, Jornal do Brasil, Rádio Educadora Paulista, além de audições na TV Itacolomi e na TV Tupi. Foi crítico musical na Folha de Minas e lecionou no Instituto São Rafael por 30 anos.

Sua casa no bairro da Serra era frequentada por personalidades artísticas e intelectuais - inclusive muitos estrangeiros- o que a tornavam um agitado ponto de encontro na capital mineira. Porém, em 1969, Arnaldo optou pela tranquilidade de Lagoa Santa. vendeu sua casa em BH e mudou-se para uma casa próxima à lagoa, onde viveu seus últimos anos. Leituras em braile, estudo de idiomas (Arnaldo falava 6 idiomas) e exercícios diários ao piano faziam parte de sua rotina diária. Até que um dia de 1979 Arnaldo entrou no seu salão de música, tocou piano e não mais saiu.

Numa época em que o tema da inclusão está tão em voga, é bom refletirmos sobre a vida de um deficiente visual que enfrentou a vida com garra, qualificou-se e cavou seu espaço no mercado de trabalho. Quando lhe perguntavam sobre seu sucesso, ele respondia que era fruto de 10% de talento e 90% de muito suor. É um grande exemplo de vida que trago comigo desde a infância, pois tenho a honra de ser neta de Arnaldo Marchesotti.