segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Uai Tchê... Somos todos brasileiros!



Acabei de retornar de uma viagem à Serra Gaúcha. Além dos tradicionais pontos turísticos, procurei conhecer a população local, suas tradições genuínas (e não aquelas para turista ver) e, obviamente, a História do extremo sul do país. Uma coisa é conhecer a História por livros, outra é visitar e “respirar” o cenário da História. E eu respirei fundo...

Constatei que o Gaúcho tem muitas semelhanças com o mineiro: é acolhedor; tem uma farta, deliciosa e calórica Gastronomia; orgulha-se de sua História e Cultura. Talvez por isso tenha me sentido tão em casa! Mas quanto ao preparo para receber o turista, confesso que os gaúchos estão na nossa frente. Há uma enormidade de ofertas turísticas a preços médios e não abusivos como encontrei em outras partes do Brasil. Há oferta, mas não o irritante assédio das pessoas oferecendo seus produtos. O atendimento ao turista é sempre feito com muito respeito e qualidade, da Farmácia ao melhor restaurante da cidade. Isso faz muita diferença!

Como descendente de italiana, eu me senti bastante tocada ao conhecer as raízes da colonização europeia tão bem preservadas no Sul do país. Conheci famílias que conservam, com muito orgulho, a língua, a culinária e os hábitos italianos. Muitas preservam intactos os objetos, cartas, fotos, vestimentas, móveis e propriedades familiares por séculos e têm um enorme prazer em nos mostrar e contar Histórias e casos de família. Aprendi e me emocionei muito com essas pessoas!

Comi muito bem acompanhada de deliciosas conversas e bons vinhos e cervejas feitos artesanalmente. Visitei cidades, como Nova Petrópolis, onde se ouve o alemão na rua como se estivéssemos na Europa. Uma jovem me relatou que até ir à escola, aos sete anos, não falava Português, apenas o alemão. É muito interessante, pois são pessoas de terceira ou quarta gerações que nasceram no Brasil e jamais visitaram a Alemanha. É o poder da tradição e do orgulho de suas raízes.

Em geral conhecem a História de seus antepassados europeus profundamente, mas também a do Rio Grande do Sul. Contam com muito orgulho a História da Revolução Farroupilha (1835/1845) e como ainda hoje a comemoram anualmente, em setembro, na Semana Farroupilha. Espero um dia poder participar desses festejos.

Para quem não se lembra dessa Revolta que durou dez anos e, por pouco, não desmembrou a região Sul do restante do país, vou recordá-los. Ela faz parte da identidade cultural dos gaúchos.

Essa revolta ocorreu em um período da História do Brasil conhecido como Período Regencial, entre os reinados de D Pedro I e D Pedro II. Muitas revoltas eclodiram no país nessa época e a dos Farrapos foi uma delas.

A Revolução Farroupilha foi um conflito regional, de caráter republicano, contrário ao Governo Imperial. Os motivos da Revolta eram as insatisfações dos estancieiros do sul com o Governo Brasileiro. Sentiam-se injustiçados com os altos impostos cobrados no comércio de couro, charque e sal, produtos essenciais da economia da região na época. Em geral, sentiam-se negligenciados pelo Governo Central do Império.

Em setembro de 1835, o estancieiro Bento Gonçalves liderou um movimento que destituiu o governador da Província do Rio Grande do Sul e iniciou uma década de revoltas contra os imperialistas. Chegam a instaurar uma República no sul do país, mas terminaram rendidos em 1845 pelas tropas imperiais. Enfraquecidos, os farroupilhas aceitaram o Acordo de Paz proposto por Duque de Caxias e o Rio Grande do Sul foi reintegrado ao território brasileiro.

Confesso que acreditava que ainda hoje os sulistas fossem emancipacionistas e guardassem um sentimento de não pertencimento ao Brasil, comportando-se como uma região a parte do restante do país. Ao conhecê-los de perto e em seu habitat compreendi melhor seus valores e identidades. O gaúcho é um sujeito múltiplo de identidades e orgulha-se de suas tradições europeias, das tradições gaúchas e também de pertencerem a esse país continental e rico em diversidades.

Hoje eu me orgulho ainda mais de ser brasileira após conhecer e compreender as riquezas culturais de mais essa parte do Brasil. Que país múltiplo, plural e repleto de potencialidades o nosso!!!

OBS: Na verdade escrevi e publiquei esse artigo na Revista Bem de Vida em julho de 2013, logo após retornar do Sul. Só agora consegui disponibilizá-lo no Blog.

DINAMARQUÊS DAS CAVERNAS (Revista de História da Biblioteca Nacional)



http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/dinamarques-das-cavernas Dinamarquês das cavernas
Na vida como na obra, Peter Lund não teve medo de enfrentar o novo, e revolucionou o estudo da pré-história brasileira
Ana Paula Almeida Marchesotti

Para alguns, foi um homem arraigado a teorias científicas ultrapassadas, isolado do mundo civilizado nos confins das Minas Gerais, com comportamento eremita e excêntrico. Para outros, um inovador em diversas áreas, que ousou propor teorias polêmicas e foi ativo até o final da vida, em contato constante com a comunidade científica de seu tempo.



Capaz de inspirar interpretações tão antagônicas, o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund foi um dos muitos cientistas estrangeiros que vieram ao Brasil nos anos que se seguiram à transferência da corte portuguesa, em 1808, dispostos a desbravar a riqueza natural dos trópicos. Aos 24 anos, já era graduado em medicina e letras em Copenhague quando desembarcou no Novo Mundo, em dezembro de 1825, para realizar pesquisas no campo da história natural. Nessa primeira estada, concentrou-se nos estudos botânicos e zoológicos nos arredores do Rio de Janeiro. Chegara a exercer a atividade médica na Europa, mas desde a infância viu-se seduzido pelos estudos da natureza. Copenhague, no século XIX, era conhecida como a Atenas do Norte devido à sua grande efervescência cultural e científica. Lund não passou imune a esse momento. Foi o primeiro membro de uma tradicional família de comerciantes a seguir carreira acadêmica e científica.

Em 1829 retornou à Europa, publicou obras, inseriu-se na comunidade científica mundial e poderia ter permanecido por lá pesquisando a rica coleção que levara do Brasil. Mas quatro anos depois decidiu voltar à América. Associou-se ao botânico alemão Ludwig Riedel (1790-1861) e juntos percorreram diversos estados, coletando e analisando a flora tropical. Em Curvelo, Minas Gerais, uma coincidência mudou os planos de Peter Lund: outro Peter, também dinamarquês, cruzou seu caminho. Peter Claussen era fazendeiro na região e lhe apresentou a riqueza fóssil do interior das cavernas mineiras.

“Meus companheiros permaneceram durante muito tempo mudos à entrada deste templo; depois, involuntariamente, se ajoelharam e, persignando-se, exclamaram, diversas vezes: ‘Milagre! Deus é grande!’. Foi-me impossível dissuadi-los da ideia de que este templo devia servir de morada a Nosso Senhor. Quanto a mim, confesso que nunca meus olhos viram nada mais belo e magnífico nos domínios da natureza e da arte”, relatou Lund, ao descrever sua visita à Gruta de Maquiné. Sua trajetória pessoal e profissional mudou de rumo a partir desse encontro com as entranhas da Terra e seus segredos.

Foi também em Curvelo que Lund conheceu aquele que seria seu auxiliar e companheiro por toda a vida: o norueguês Peter Andreas Brandt (1792-1862), responsável pela maior parte das ilustrações das coleções, cavernas e paisagens que explorou. Mais tarde, Lund se separou de Riedel e de Claussen, mas nunca foi capaz de se afastar do solo mineiro. Riedel teve problemas de saúde e decidiu interromper a expedição, retornando ao Rio de Janeiro. Quanto a Claussen, Lund queixou-se diversas vezes de atitudes “desonestas” que o teriam prejudicado profissionalmente. Embora também conhecesse as potencialidades científicas dos fósseis, o compatriota tinha explícito interesse financeiro na exploração das cavernas, vendendo os fósseis encontrados aos museus europeus.

Em outubro de 1835, Lund partiu de Curvelo rumo ao Arraial de Nossa Senhora da Saúde de Lagoa Santa, um pequeno povoamento de cerca de 60 casas. Precisava de uma base permanente para explorar as cavernas da região, trabalho ao qual dedicaria os próximos dez anos de sua vida, coletando e estudando fósseis. Assim, revelaria ao mundo à pré-história brasileira. Estudou a fauna de mamíferos da região do Vale do Rio das Velhas, as peculiaridades de sua população, os achados arqueológicos, as formações geomorfológicas e botânicas, as pinturas rupestres. Contribuiu para estudos de outros cientistas que acolheu e orientou, como Eugen Warming (1841-1924), fundador da fitoecologia mundial.

Era um momento de grandes mudanças no cenário científico mundial. Lund foi contemporâneo do maior evolucionista e do maior catastrofista da história – Charles Darwin (1809-1882) e Georges Cuvier (1769-1832) – e sofreu influência de ambos: em alguns trabalhos demonstra adesão à interpretação catastrofista, em outros, uma abertura para a constatação de sinais da evolução. Comprometido com a técnica científica e o seu rigor, era capaz de mudar o rumo de sua vida e de suas pesquisas sempre que instigado ou quando constatada a sua necessidade.

Durante escavações, Lund encontrou na Gruta do Sumidouro fósseis humanos na mesma escala geológica e no mesmo estado de fossilização de antigos animais extintos, provando que viveram na mesma época e que a ocupação da América era bastante remota. Ao estudar os fósseis humanos, percebeu características que os diferenciavam da raça mongólica – que teria dado origem aos indígenas sul-americanos. Diante disso, propôs que aqui os humanos teriam coexistido com os gigantescos mamíferos extintos e que uma população diferente dos primitivos indígenas americanos havia ocupado o Brasil nos tempos remotos. Essas ideias foram levantadas por Lund em meados do século XIX e ainda hoje ocupam a pauta de discussão de cientistas que se debruçam sobre sua obra, sua coleção de fósseis e os sítios arqueológicos que apresentou ao mundo.

Após divulgar conclusões tão polêmicas, em 1845 Lund deu por encerradas suas atividades exploratórias nas cavernas, enviou sua coleção para a Dinamarca e doou algumas peças ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Mas decidiu permanecer em Lagoa Santa, onde ficou até a sua morte, em 1880, jamais retornando à Europa. Essa decisão provocou a imaginação coletiva e muitas têm sido as hipóteses para explicá-la: saúde debilitada, dificuldades financeiras, receio de retornar ao cenário científico europeu depois de tão longo afastamento, crise existencial diante de seus achados científicos ou o simples gosto de viver no interior do Brasil.

Lund demonstrou ser um homem que não temia mudanças e desafios. Rompeu a tradição familiar de grandes comerciantes e seguiu a carreira acadêmica; abandonou a promissora profissão médica para praticar a história natural; deixou de se dedicar à zoologia e à botânica para penetrar em um novo campo de pesquisa: a paleontologia. Mais tarde, teve a coragem de se desvencilhar da coleção de fósseis que lhe custou tantos anos de árduo trabalho para exercer outras formas de atividade científica.

Ao contrário do que se pode imaginar, sua vida cotidiana em Lagoa Santa era bastante movimentada. Atendia à população local como médico, dava aulas às crianças da comunidade e criou a banda de música Santa Cecília, doando-lhe os instrumentos e ensinando fundamentos musicais aos seus componentes. Era constantemente consultado sobre os mais diversos assuntos, pois todos o tinham como uma referência de sabedoria. A cidade tornou-se ponto de parada de inúmeros viajantes e cientistas estrangeiros que buscavam um encontro com o reconhecido dinamarquês.

Lund não se casou, nem se tem notícia confiável sobre envolvimentos amorosos que tenha mantido no Brasil. Também não teve filhos, mas educou Nerêo Cecílio dos Santos – o filho de um de seus empregados – como um pai. Nerêo teve uma educação refinada, aprendeu vários idiomas, música, literatura e noções de História Natural. Mais tarde tornou-se um dos auxiliares do pai adotivo e, quando Lund faleceu, foi beneficiado no testamento com bens e uma pensão vitalícia.

Merecidamente reconhecido como o “Pai da Paleontologia Brasileira”, Peter Lund fez de seus achados uma fonte permanente de questionamentos sobre a história da Terra e da vida.

Ana Paula Almeida Marchesottié gestora da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte e autora de Peter Wilhelm Lund – O naturalista que revelou ao mundo a Pré-História Brasileira (E-Papers, 2011).

Catastrofista com ressalvas O Catastrofismo, teoria enunciada por Georges Cuvier (1769-1832), defende que a história da Terra foi marcada por grandes catástrofes naturais ou revoluções, responsáveis pelo extermínio da maior parte ou de todas as espécies vivas de determinadas regiões, além de terem definido o aspecto geológico atual do planeta. Posteriormente, teria havido um deslocamento de espécies de umas regiões para outras, repovoando-as. Cuvier é considerado o fundador da anatomia comparada e da paleontologia dos vertebrados.

Peter Lund era adepto do catastrofismo, mas rejeitou muitos de seus princípios à medida que encontrava provas que lhe permitiam contestar a teoria. No entanto, o uso da anatomia comparada e a ideia de extinção das espécies introduzidas por Cuvier o acompanharam por toda a vida e foram fundamentais para o aspecto inovador de seu trabalho.

Saiba mais - Bibliografia

LUND, Peter Wilhelm. Memórias sobre a Paleontologia Brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1950.

NEVES, Walter Alves & PILÓ, Luís Beethoven. O Povo de Luzia – Em busca dos primeiros americanos. São Paulo: Globo, 2008.

Filme

Bem Cultural da Rede Minas, episódio “O legado de Lund” (Rede Minas, 2012) www.youtube.com/watch?v=OxfvXBMI8wE

Internet

Blog “Trem da história”: http://tremdahistoria.blogspot.com.