sábado, 4 de julho de 2009

De Ícaro a Dumont.



A overdose de notícias e análises técnicas sobre o acidente aéreo da Air France provocou grande comoção internacional e aumentou, em muitos, o pânico de voar. Apesar de conhecerem as estatísticas que provam que o risco de morte é muito maior em veículos automotores, muitas pessoas ainda acham que voar não é coisa para os homens. Afinal não nascemos com asas... Isso me fez lembrar os pioneiros que ousaram questionar a natureza humana e dedicaram sua vida ao sonho de voar.
A mitologia grega eternizou o sonho e a imprudência de Ícaro. Filho do artista e inventor ateniense Dédalo, Ícaro vivia com seu pai na ilha de Creta. Ambos eram prisioneiros no labirinto do temido Minotauro. Dédalo, então, fabricou asas artificiais adaptando suas espátulas e utilizando cera para que pudessem fugir da ilha pelos ares. Antes que partissem, instruiu o filho para que não voasse alto, pois não poderiam se aproximar demasiadamente do sol. Ícaro, porém, esqueceu-se das recomendações paternas e voou cada vez mais alto. O sonho de navegar pelos ares foi mais forte que a prudência recomendada. A cera das asas derreteu, ele caiu e se afogou no Mar Egeu.
Trata-se de uma entre tantas tragédias gregas, mas que demonstra como o ser humano busca sempre superar suas limitações e “voar” longe... Séculos mais tarde o sonho de Ícaro virou realidade, apesar de às vezes vir também acompanhado de traços de tragédia.
Os homens começaram a conquistar os ares primeiramente com balões esféricos de ar quente, originários de experiências do português Bartolomeu de Gusmão, no século XVIII. Apesar de voar, o balão conduzia-se pelo vento, o que não permitia a escolha de sua direção. Voar no comando, como os pássaros, sempre foi o desejo dos humanos.
Leonardo da Vinci, no século XV, fez longos estudos sobre as asas e o vôo dos pássaros. Não conseguiu colocar seus projetos em prática, mas suas anotações são uma referência notável. Nos séculos seguintes, surgiram relatos da construção de máquinas voadoras estranhas e fantásticas, de sucesso nunca comprovado. O sonho permanecia vivo.
Somente no século XIX surgiram estudos teóricos e práticos mais fundamentados. No início do século XX, a idéia de voar conduzindo a trajetória em um aparelho mais pesado que o ar já era uma realidade no meio científico. Paris era o centro dessa busca onde se concentravam os pioneiros da aviação. Por lá se encontrava um brasileiro franzino de corpo e gigante de determinação: Alberto Santos Dumont.
Dumont nasceu em Minas Gerais em 1873, quando seu pai – filho de imigrantes franceses - comandava a construção de uma estrada de ferro. Posteriormente, seu pai tornou-se fazendeiro de café no Rio de Janeiro e São Paulo, mas sempre levando consigo os hábitos modernizantes de engenheiro. Automatizou os processos de separação de grãos, introduziu inovações na lavoura, construiu ferrovias para o escoamento da safra e substituiu a mão-de-obra escrava pela imigrante. Em alguns anos, transformou sua fazenda na maior produtora de café do país.
Alberto cresceu em um ambiente que valorizava a inovação e sempre foi fascinado por tecnologia. Aos 15 anos viu pela primeira vez um balão esférico e escreveu: “Meditando sobre a exploração do grande oceano terrestre, também eu criava aeronaves e inventava máquinas”. Mais tarde seus devaneios viraram ação em busca desse sonho.
Viajou para Paris, voou em balões e virou um estudioso e construtor de máquinas voadoras. Projetava, financiava e pilotava suas invenções. Seus testes eram públicos e levavam multidões às ruas de Paris. Seu objetivo não era o lucro. Quando alguém se interessava em comprar suas invenções, dizia que não as construía para vender, mas que colocava seu projeto à disposição de qualquer um que quisesse construir um modelo igual ao seu. Seu desejo era difundir a aviação.
Santos Dumont construiu balões, dirigíveis e, em 1905, publicou um artigo afirmando que o desenvolvimento de aeroplanos motorizados mais pesados que o ar já era possível. A partir daí, dedicou-se a esse projeto e no dia 23 de outubro de 1906 realizou o vôo histórico do 14 BIS. Percorreu apenas 60 metros a 3 metros de altura, mas provou que o sonho era agora uma realidade. Um mês depois, fez novo vôo percorrendo 220 metros a uma altura de 6 metros. Os avanços daí em diante seriam rápidos.
Tornou-se uma celebridade no mundo científico, construiu novos aviões, bateu seus próprios recordes. Foi o primeiro a decolar - sem necessidade de uma rampa para lançamento - a bordo de um avião, impulsionado por um motor aeronáutico e o primeiro a cumprir um circuito pré-estabelecido sob testemunho oficial de especialistas, jornalistas e populares.
Doente, passou a dedicar-se a astronomia. Nunca desviou os olhos do céu! Morreu no Brasil, em 1932, de forma suspeita. Alguns acreditam que tenha se suicidado devido a uma depressão provocada pelo uso indevido de sua invenção nas guerras. Pôde presenciar que sua invenção, apesar dos incontestáveis benefícios à Humanidade, também pode provocar tragédias.

Autora: Ana Paula A. Marchesotti

Documento nos revela a cidade de Lagoa Santa/MG no século XIX.


Clique na imagem para ampliá-la.

Ao desvendarmos a História, muitas vezes nos deparamos com vestígios raros e ricos em informações sobre nosso passado. Vestígios que se transformam em documentos históricos esclarecedores sobre o cotidiano e relações sociais de uma época.
Há alguns anos atrás fui surpreendida com um desses documentos. Estava pesquisando a correspondência do naturalista dinamarquês Peter W. Lund (1801-1880) com seus amigos europeus quando encontrei um mapa de Lagoa Santa/MG do século XIX. Não era um mapa comum, mas sim um esboço das ruas e casas da cidade, seus respectivos moradores e comentários a respeito de alguns deles.
O mapa foi desenhado por Andreas Brandt - companheiro e auxiliar de Lund em suas pesquisas paleontológicas - e tinha como objetivo informar a um amigo sobre os recentes acontecimentos da cidade. O amigo era o renomado cientista J.R.Reinhardt que viveu em Lagoa Santa nos anos de 1850-1852 e 1854-1856 na companhia de seu mestre Peter Lund.
Após retornar à Copenhague, Reinhardt sempre se queixava nas correspondências de saudades do Brasil e dos amigos aqui deixados. Lund, então, pediu a Brandt que fizesse o mapa e ele próprio escreveu uma “legenda” retratando de forma detalhada e, muitas vezes, irônica a vida no pequeno arraial. Documentos como este são um presente para os historiadores, apesar de não ter sido esta a intenção de seus criadores.
Convido-os a percorrer as ruas de Lagoa Santa do século XIX, conhecer seus moradores e alguns detalhes de suas vidas. Tudo isso, através do olhar de dois estrangeiros que aqui viveram e morreram: Andreas Brandt e Peter Lund. Se vocês vivem ou freqüentam Lagoa Santa, sua caminhada pelo centro da cidade não será mais a mesma após essa viagem no “tunel do tempo”. Se vocsê não a conhecem, fica aqui um convite: descubram a Lagoa Santa do século XXI e, também, a do século XIX. Divirtam-se.

Autora: Ana Paula A. Marchesotti

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Oscar Niemeyer: o inveterado sonhador de 101 anos presenteia Minas Gerais com mais uma obra de genialidade.




Em 1897 foi inaugurado o novo Centro Administrativo de Minas Gerais. Juntamente com a nova capital, transferiu-se de Vila Rica (atual Ouro Preto) para Belo Horizonte toda a estrutura administrativa do Estado. A Praça da Liberdade foi construída de forma a abarcar as diversas ramificações do poder político-administrativo mineiro. Belo Horizonte foi planejada como símbolo do progresso e da República, respondendo, assim, aos anseios da Modernidade.
Hoje presenciamos um novo momento de mudança: o processo de construção e transferência do Centro Administrativo para o Serra Verde. Não há quem não desvie o olhar da Linha Verde por alguns instantes a fim de observar as obras e admirar-se com suas formas arredondadas e surpreendentes. O projeto é assinado pelo arquiteto Oscar Niemeyer que deixa mais uma vez sua marca no cenário e História mineira.
Niemeyer revolucionou a arquitetura mundial e tudo começou por aqui. Em 1943, inaugurou o Conjunto Arquitetônico da Pampulha durante o Governo JK. Mais tarde, essa dupla surpreenderia o mundo com a construção de Brasília. Aos 101 anos de idade, Niemeyer demonstra que continua criativo, ousado, moderno e polêmico.
Normalmente aprende-se mais sobre os mortos do que sobre os vivos. Basta falecer para ser biografado, estudado, homenageado, virar filme e livro. Niemeyer é um personagem histórico tão marcante que já passou por tudo isso e ainda está na ativa, criando e fazendo História.
Suas qualidades profissionais são incontestáveis e já bastante conhecidas. Porém, o que mais me fascina são suas idéias (algumas vezes polêmicas!), sua personalidade, sua trajetória de vida.
Nada melhor do que suas próprias palavras para retratar um homem. Diante das comemorações do seu centenário, Niemeyer disse: “Cem anos é uma bobagem. Depois dos 70 a gente começa a se despedir dos amigos. O que vale é a vida inteira, cada minuto também, e acho que passei bem por ela.” Certamente que sim, Oscar!
Ao ser tão bajulado por suas criações, afirma que “mais importante que a arquitetura é estar ligado ao mundo. É ter solidariedade com os mais fracos, revoltar-se contra a injustiça, indignar-se com a miséria”. “O essencial é o bom comportamento do homem diante da vida”.
Niemeyer sempre denunciou as injustiças sociais e foi perseguido por isso. Em 1965, demitiu-se da Universidade de Brasília juntamente com outros professores em protesto à política da Ditadura Militar. Sofreu retaliações, teve seus projetos recusados e sua clientela desapareceu. Precisou sair do país para continuar trabalhando e só retornou com a Abertura Política na década de 80.
Nunca escondeu suas convicções: “Nunca me calei. Nunca escondi minha posição de comunista. Os mais compreensíveis que me convocam como arquiteto sabem da minha posição ideológica. Pensam que sou um equivocado e eu penso a mesma coisa deles. Não permito que ideologia alguma interfira em minhas amizades.”
Aposentar? Nem pensar. Ele não pára nunca... Afinal, “como explicar que cruzar os braços é um problema e que a vida dura só um minuto?” Para ele, “A vida é um sopro.” Um sopro de genialidade e solidariedade.
Acredita que “nossa passagem pela vida é rápida. Cada um vem, conta sua história, vai embora e depois ela será apagada para sempre. A vida continua.” Desta vez sou abrigada a contestá-lo, Oscar!
Alguns deixam marcas que não se apagam tão facilmente. O novo Centro Administrativo de Minas Gerais será uma dentre tantas marcas que Oscar Niemeyer nos deixará. Uma obra que nasce Moderna assim como o Centro Administrativo de 1897 o foi em sua época. Seu idealizador é um homem que sabe que “a gente tem que sonhar, senão as coisas não acontecem.” Obrigado, Oscar, por nos escolher como cenário para mais esse sonho...

“Não é o ângulo reto que me atrai
Nem a linha reta, dura, inflexível
Criada pelo Homem.
O que me atrai é a curva livre e sensual.
A curva que encontro nas montanhas do meu país
No curso sinuoso dos rios
Nas ondas do mar, nas nuvens do céu
No corpo da mulher preferida
De curvas é feito todo o Universo
O Universo curvo de Einstein”
Oscar Niemeyer


Autora: Ana Paula A. Marchesotti

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Peter Lund: o homem que não temia desafios


A paisagem natural, flora e fauna da região do Rio das Velhas despertaram o nteresse de muitos cientistas e viajantes ao longo do tempo. Alguns passaram rapidamente por Minas Gerais; outros aqui se estabeleceram por algum tempo, a fim de analisarem mais detidamente a riqueza natural da região.Poucos, porém, optaram por viver definitivamente no Brasil. Um deles tornou o nome de Minas Gerais conhecido mundialmente e atraiu diversos outros estrangeiros para a região. Quem foi esse Homem? Peter Wilhelm Lund (1801/1880).

Em minhas pesquisas descobri que, apesar do nome de Peter Lund ser exaustivamente citado, poucos conhecem sua história e sua importância para a região e para a ciência brasileira. Fiz uma biografia científica de Peter Lund como dissertação de mestrado (Infelizmente, ainda não publicada por falta de patrocínios) e dividirei com vocês um pouco do que aprendi com este homem.

Nascido na Dinamarca em 14 de junho de 1801 numa abastada família de comerciantes, Peter Lund graduou-se em Letras e Medicina, mas logo foi seduzido pelas pesquisas de História Natural. Isso foi possível devido à ampla formação universitária do século XIX, bem diferente da formação fragmentada de hoje.

Decidido a ser um naturalista, Lund fez sua primeira viagem ao Brasil (1825/1829) na qual restringiu-se à província do Rio de Janeiro e às pesquisas botânicas e zoológicas. Dias antes de sua chegada nascera o herdeiro do trono brasileiro - o futuro D. Pedro II - e Lund se deparou com um país em festa. O que terá pensado o rico e culto dinamarquês diante de um cenário e povo tão diverso do seu?

O estranhamento sentido não o impediu de retornar ao Brasil em 1833 (ou foi exatamente o que o atraiu?), após um período na Europa travando contato com grandes cientistas. No Rio de Janeiro conheceu o botânico alemão Ludwig Riedel e viajaram juntos pelo interior do país pesquisando a peculiar flora brasileira. Em Minas, os planos de Lund seriam definitivamente transformados.

Em Curvelo, os naturalistas se encontram casualmente com outro dinamarquês, Peter Claussen, que os apresentou às ossadas encontradas nas cavernas da região e às belezas escondidas nas profundezas do solo brasileiro. Lund viu-se fascinado pelas potencialidades científicas das cavernas mineiras e, após se separar de Riedel em Ouro Preto, retornou às cavernas que tanto o atraíam e que assim descreveu: "Confesso que nunca meus olhos viram nada de mais belo e magnífico nos domínios da natureza e da arte."

Após divergências com Claussen, Lund partiu para explorar outras cavernas no Vale do Rio das Velhas, fixou-se em Lagoa Santa e explorou seu entorno por cerca de dez anos, coletando e estudando os fósseis encontrados. Realizou importantes estudos sobre a fauna de mamíferos do Vale do Rio das Velhas, as peculiaridades de sua população pré-histórica, achados arqueológicos, pinturas rupestres e ocupação da América.

Seus estudos o tornaram uma referência em diversas áreas - Arqueologia, Zoologia, Botânica, Espeleologia - e o Fundador da Paleontologia Brasileira. Lund não foi o primeiro a falar de fósseis no Brasil, mas o primeiro a se dedicar de forma específica e sistemática a esse objeto de estudo.

Surpreendentemente, após estudos tão consistentes, Lund encerrou suas atividades exploratórias nas cavernas em 1845, enviou sua grandiosa coleção para a Dinamarca e permaneceu em Lagoa Santa até sua morte. Muitos têm sido os motivos apontados para essa atitude extremada: problemas de saúde; dificuldades financeiras; conflitos existenciais diante de descobertas que negavam teorias nas quais foi formado; afastamento da comunidade científica a que estava fadado em Lagoa Santa,... Possivelmente todos esses motivos tenham contribuído para sua decisão.

Essa atitude torna-se inteligível quando verificamos que Lund nunca temeu mudanças e desafios em sua vida profissional. Rompeu a tradição familiar de grandes comerciantes para seguir a carreira acadêmica; abandonou a promissora profissão médica para praticar a História Natural; deixou de dedicar-se à Zoologia e Botânica para penetrar em um novo campo de pesquisa: a Paleontologia. Mais tarde, teve a coragem de se desvencilhar dos fósseis que lhe custaram tantos anos de árduo trabalho para exercer ou-tras formas de atividade científica no Brasil, sem jamais retornar à Europa.

Peter Lund foi um homem surpreendente e apaixonante exatamente porque foi humano e, como tal, muitas vezes ambíguo, contraditório e incompreensível. Viveu quase 50 anos entre nós, optou por ser enterrado sob um pequizeiro do cerrado mineiro e nos deixou grandes lições de vida e contribuições científicas. Portanto, está passando da hora de conhecermos melhor esse dinamarquês tão mineiro que faz parte de nossa História e identidade cultural.

Autora: Ana Paula A.Marchesotti
Fonte: Revista Condomínios, v.2, fev/2007

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Mosteiro de Macaúbas: retrato vivo da História e religiosidade mineira.


Minas Gerais é um território cravado de religiosidade e História. Quando digo isso, não me refiro apenas às ditas “cidades históricas” (termo equivocado, já que todas as cidades são históricas) e suas deslumbrantes igrejas barrocas. A religiosidade e o culto às tradições e à História fazem parte da cultura mineira.

Um dos marcos mais impressionantes do poder da religiosidade na vida privada das pessoas é o Mosteiro de Macaúbas, situado a 12 km de Santa Luzia/MG. Atualmente o Mosteiro abriga as Irmãs da Ordem da Imaculada Conceição que vivem recolhidas em constante contemplação e oração. Porém, a história de Macaúbas já foi bem mais movimentada...

Foi criado como Recolhimento de Macaúbas por iniciativa de Félix da Costa. Natural de Penedo em Alagoas, Félix chegou à região por volta de 1711 e fixou-se no sítio denominado Macaúbas. Era devoto de Nossa Senhora da Conceição e obteve autorização do bispo para usar hábito e agenciar esmolas para construção de uma capela para invocação desta santa. Mais tarde, conseguiu autorização para fundar um Recolhimento feminino e passou a percorrer diversos arraiais arrecadando fundos para sua construção. Em 1714, Félix da Costa deu início às obras da primeira sede do Recolhimento de Macaúbas que se tornaria o primeiro Recolhimento feminino de Minas.

Os Recolhimentos femininos no Brasil Colonial e Imperial tinham a função de educar e preparar as jovens para um futuro casamento dentro dos preceitos cristãos; redimir aquelas que tivessem uma conduta moral inadequada para os padrões da época; proteger órfãs, viúvas e esposas que se encontravam desamparadas. Eram um misto de convento e educandário, espaço raro de educação formal das mulheres. Numa época em que esta educação era oferecida apenas aos homens, em Macaúbas as mulheres aprendiam a ler, escrever e calcular. Porém, poucas tiveram essa possibilidade, já que as internas precisavam oferecer um alto dote para que fossem aceitas. Era um espaço reservado à elite e às tradicionais famílias mineiras.

O Recolhimento foi se expandindo com admissão de novas internas e aumentando seu patrimônio. Além dos dotes, recebia doações de particulares e da Coroa Portuguesa. Assim acumulou terrenos, áreas de mineração, escravos, obras de arte sacra e uma nova sede foi construída. Em 1733 foi autorizada a construção do atual prédio que passou a abrigar as recolhidas a partir de 1743. Félix da Costa faleceu em 1737 e as obras foram assumidas por sua sobrinha, Madre Antônia da Conceição. Em 1806, no auge de Macaúbas, 86 mulheres estavam recolhidas e 185 escravos trabalhavam na mineração, agricultura e atendimento às internas.

Apesar de dedicado à educação desde seus primórdios, a partir de 1846 Macaúbas foi oficialmente qualificado como Recolhimento e Colégio, situação que vigorou até a década de 30. O Padre Antônio Torres, do tradicional Colégio Caraça, foi o responsável pela reformulação de Macaúbas que se tornou uma referência nacional. No entanto, as mudanças vivenciadas pela sociedade, a concorrência com outras instituições educacionais que surgiam e a crise econômica interna advinda de administrações ineficientes provocaram a decadência e fechamento do Recolhimento/ Colégio de Macaúbas. Ele foi transformado em Mosteiro e sua edificação tombada pelo IPHAN e IEPHA-MG. Hoje é, sem dúvida, um dos mais preciosos patrimônios de Minas Gerais.

Nessa longa existência, Macaúbas foi palco de histórias pitorescas e curiosas. Sua própria criação foi fruto da pressão de colonos que queriam uma “saída honrosa” para as filhas não casáveis e que não tinham, no Brasil, a possibilidade de serem colocadas em conventos tradicionais. Isso porque, a Coroa Portuguesa dificultava a abertura de conventos, já que havia carência de mulheres na colônia e não seria interessante que as poucas disponíveis se tornassem reclusas e celibatárias.

Se para algumas, Macaúbas representava proteção ou possibilidade de formação; para outras era sinônimo de reclusão e punição. Mulheres infiéis ou suspeitas de condutas inadequadas; esposas e filhas solteiras de homens ausentes em viagens ou outros motivos; viúvas e órfãs eram afastadas da sociedade e obrigadas a viver na rígida disciplina de Macaúbas, muitas vezes contra o seu desejo.

Ao se internar no Recolhimento, as mulheres se fechavam para vida mundana, trocavam os nomes, usavam o hábito de Nossa Senhora da Conceição, mantinham uma rotina de silêncio, humildade e oração. Evidentemente, com o passar dos anos, as regras do Recolhimento foram se adaptando ao mundo, mas sempre guardando seus preceitos básicos.

Quitéria Rita - filha da lendária Chica da Silva – viveu em Macaúbas por 15 anos juntamente com suas filhas. Reclusa, aguardou o retorno de seu amante, Padre Rolim, que vivia um exílio decorrente de seu envolvimento na Inconfidência Mineira. Aliás, não só Quitéria, como as nove filhas de Chica da Silva com o contratador português João Fernandes de Oliveira foram internadas no Recolhimento. João Fernandes financiou a construção de uma nova ala para que elas tivessem mais conforto e de uma casa anexa para que Chica da Silva se hospedasse durante suas visitas às filhas.

Quantas histórias e sentimentos antagônicos aquelas paredes presenciaram: saudade, lamento, indignação, desamparo; alegria, cumplicidade, esperança e muita paz. Aliás, Paz é o sentimento que me envolve ao visitar o Mosteiro de Macaúbas. Ele é uma fonte viva de História, religiosidade, beleza artística, arquitetônica e natural, meditação e muita, muita Paz.

Autora: Ana Paula A. Marchesotti.
Fonte: Revista Condomínios, v.13. dez/2008

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Que Drummond e Lund nos iluminem

A Linha Verde tem trazido para a região em seu entorno um desenvolvimento acelerado que demanda uma série de reflexões e cuidados. Verificamos que alguns comemoram o progresso, os empregos e os lucros que virão; outros lamentam a violência e demais mazelas que inevitavelmente acompanham um desenvolvimento mal planejado. Poucos, porém, demons- tram preocupação com um de nossos maiores patrimônios: as cavernas que compõem o Carste de Lagoa Santa, suas belezas naturais e potencialidades de estudos sobre nossa História. Estas são paulatinamente destruídas e pedem socorro.

Provavelmente, a falta de "defensores" seja conseqüência do desconhecimento por parte da população do tesouro que possuímos. Ou talvez precisemos da sensibilidade e lucidez dos poetas para enxergarmos melhor o que nos cerca e valorizarmos o que realmente tem valor. Portanto, reproduzirei nesta coluna um texto do inigualável Carlos Drummond de Andrade escrito em 1974, mas que - como toda grande obra - parece ter sido escrita para nós.



Ao Dr. Lund, em seu repouso.

Cuidado, Dr. Peter Wilhelm Lund, que dorme em seu último sono em Lagoa Santa: previno-lhe que seu repouso eterno corre perigo. A região em que o senhor viveu, pesquisou e estabeleceu os fundamentos da Paleontologia Brasileira está sendo varrida pelo ciclone do desenvolvimento-acima-de-tudo, que promete acabar com as suas grutas, os seus fósseis e toda a pré-história nacional. A exploração de calcário para fabrico de cimento vai arrasar as maravilhosas formações naturais que compuseram o cenário definitivo de sua vida. Amanhã, quem sabe? Esgotados os depósitos de matéria-prima, o senhor mesmo será tecnicamente classificado como calcário de 2º grau, e do seu jazigo inscrito nos livros do Patrimônio Histórico do Brasil se fará uma fornada de cimento para novas torres redondas na Barra da Tijuca.

De resto, sei que não adianta meu aviso, sei que não adianta impedir a transformação da paisagem em cimento. Temos que viver o nosso tempo, ou, mais corretamente, morrer o nosso tempo. Quem falou aí em preservar os traços deixados pelo homem primitivo, como tarefa de sumo interesse para a compreensão da vida? Esse perdeu o seu latim - o mesmo latim de que o senhor se serviu para identificar o seu megatherium, o seu chlamidotherium, o seu glyptodon. Pois o próprio latim não acabou, no quadro da cultura geral?

Desculpe, meu sábio venerando, este chamado importuno, que nem sequer deve tê-lo acordado. Certamente já o acordara antes o tonitrom dos tratores incumbidos de devastar o solo, a vegetação e toda lembrança do mundo imemorado. A esse som nada musical sucederá outro, que o manterá desperto: o das britadeiras funcionando em ritmo de Brasil grande e apressado. O senhor perdeu o direito à paz, como de resto nós todos o perdemos, e as próprias máquinas. Fique aí quietinho em seu túmulo, enquanto se anuncia para meados de 1975 o desaparecimento da Lapa Vermelha, ou Lapinha, que era a menina-dos-seus-olhos... A Lapinha, sabe? Que vinha sofrendo a agressão dos namorados, dos torcedores de futebol, dos fotógrafos de Manchete, que nela rabiscavam inscrições bobas ou que revestiam de óleo suas pinturas, para melhor efeito de cores das reproduções, enquanto os afeitos a souvenirs furtavam lascas de estalactites e estalagmites, para se gabarem de ser proprietários de esculturas da natureza. Esse pessoal executou os serviços preliminares de desbastamento da área. Vem agora a fase sistemática de desintegração plena da Lapinha, aquela mesma em cujo recinto sombrio e rico de mistérios telúricos o senhor passeou e meditou, no itinerário do sonho para a ciência.

Prometo versejar uma elegia, quando tudo estiver consumado. É só o que posso fazer, em honra da caverna clássica e do sábio que a indicou ao zelo das novas gerações, cuidando que, no futuro, suas investigações teriam prosseguimento, e que ali se instalaria um mutirão de pesquisadores ávidos de descobrir os enigmas da Terra e do Homem. Daqui a seis anos, sabe? Passará o centenário da morte do senhor. Podemos conjeturar que até lá sua morte se desdobrará e multiplicará na morte das grutas. Então, na rasa planície, extinto o eco dos tratores, britadeiras e esteiras transportadoras de calcário, memória não haverá nem do senhor nem dos grupos alegres de turistas que começaram a demolir as criações da natureza para que outros completassem a obra. É possível que, no silêncio, ouvido mais apurado ouça aquela música sem som que se filtra entre o vazio e a ruína, a música do nada. Teremos chegado à perfeição do não-existente, àquele estado de não-ser, que até a morte se distancia. E nessa música irreal se perceberá a vaga exalação de um responso: Minas Gerais vendeu sua alma ao desenvolvimento, e deu de pinga sua pré-história.

Boa-noite, Dr. Lund.

Carlos Drummond de Andrade
(12/03/1974)


Espero que esse texto nos faça refletir sobre o que estamos fazendo (ou permitindo que se faça) com nossas maiores riquezas e nos estimule a lutar pelo que sobrou delas. Que Drummond e Lund nos ilumine!!!

Autora: Ana Paula A Marchesotti
Fonte: Revista Condomínios, v.3, abril/2007.

Ecologia Moderna: a ciência que nasceu no cerrado mineiro


Minas têm seus encantos e muitos foram os estrangeiros que sucumbiram diante deles. Abandonaram o conforto e a "civilização" européia para viverem durante anos ou por toda a vida no interior das Minas Gerais.

Coma já dizia Guimarães Rosa, Minas são muitas. A região do cerrado é uma Minas dentre tantas outras. Não tem a exuberância e beleza incontestável das florestas tropicais, no entanto, guarda segredos e riquezas que fascinam aqueles que têm a sensibilidade para descobri-los.

Alguns desbravadores do cerrado mineiro tornaram-se bastante conhecidos, como o naturalista dinamarquês Peter Lund e seu ilustrador Andréas Brandt. Convido-os agora a conhecer um pouco da história de um outro dinamarquês: Eugene Warming (1841/1924). Sei que esse nome é desconhecido para a maioria de vocês e garanto que irão se surpreender!

Warming viveu em Lagoa Santa por três anos - entre 1863 e 1866 - realizando estudos botânicos que o tornaram um marco na ciência mundial. Ao publicar sua obra "Lagoa Santa - Contribuição para a fitogeografia biológica", Warming tornou-se o Fundador da Ecologia Vegetal. Isso porque estava atento às condições de existência e não apenas às formas da flora brasileira Não é de se admirar que a Ecologia, ciência tão imprescindível no mundo moderno tenha surgido no cerrado mineiro a partir de estudos desse desconhecido dinamarquês?

Eugene Warming descobriu Lagoa Santa através de seu conterrâneo Peter Lund. Após a morte de seu auxiliar Andréas Brandt , Lund pediu a um amigo dinamarquês que lhe arranjasse um substituto. O jovem botânico foi convidado, aceitou o desafio e aos 22 anos desembarcou no Brasil rumo à longínqua Lagoa Santa. Apesar dos sacrifícios que teria que passar, era uma valiosa oportunidade de desbravar a vegetação americana.


É sempre bom lembrarmos o que representava o selvagem e desconhecido Brasil do século XIX, o inexplorado cerrado e a imprevisível aventura da viagem vivenciada por Warming e outros naturalistas deste período. As coisas mudaram muito por aqui...

Warming pretendia viver em Lagoa Santa por dois anos, tempo que achava suficiente para estudar a flora da região. Dividia seu tempo entre os estudos botânicos, expedições de coleta de plantas nos arredores da cidade e as tarefas de auxiliar o cientista Peter Lund, nesta época com seus 62 anos de idade. Esse trabalho se resumia a organizar a correspondência, escrever e ler cartas, jornais e artigos científicos recebidos por Lund, além de pequenas tarefas cotidianas. Peter Lund já havia encerrado suas expedições às cavernas e enviado sua coleção de fósseis à Dinamarca, portanto, auxiliá-lo em suas atividades ocupava pouco tempo de Eugene Warming. Ele soube aproveitar não só o tempo ocioso como também os conhecimentos de Lund a seu favor.

Lund conhecia bem a região e tinha amplos conhecimentos botânicos. Além de preciosas informações e disponibilização de livros de consulta, Lund presenteou seu auxiliar com seus escritos botânicos e seu diário da viagem empreendida entre 1833 e 1835 pelo Brasil, rico em observações sobre a vegetação brasileira. Mesmo após retornar à Dinamarca, Warming continuou em contato com Lund através de farta correspondência e envio de espécies requeridas pelo botânico.

Warming trouxe consigo uma grande novidade para a pacata Lagoa Santa: uma máquina fotográfica. Imaginem o rebuliço criado na cidade por essa recente invenção? Warming fotografou a vegetação, a cidade, figuras ilustres e também habitantes comuns de Lagoa Santa. Acredita-se que esses tenham sido os primeiros registros fotográficos desta região mineira.

Eugene Warming destacou-se na ciência mundial, ajudou a divulgar pelo mundo as maravi
lhas de Minas Gerais e eternizou imagens da nossa História e da nossa gente. Entretanto, deixou poucas marcas na memória dos mineiros tornando-o um desconhecido entre nós. Felizmente a memória não é estática. Ela é viva, dinâmica e é construída e descontruída a todo o momento pelos sujeitos históricos. Cabe a nós salvarmos a memória de Eugene Warming e tantos outros que contribuíram para sermos o que somos hoje.

Autora: Ana Paula Marchesotti
Fonte: Revista Condomínios, v.10, junho/2008