segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

DINAMARQUÊS DAS CAVERNAS (Revista de História da Biblioteca Nacional)



http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/dinamarques-das-cavernas Dinamarquês das cavernas
Na vida como na obra, Peter Lund não teve medo de enfrentar o novo, e revolucionou o estudo da pré-história brasileira
Ana Paula Almeida Marchesotti

Para alguns, foi um homem arraigado a teorias científicas ultrapassadas, isolado do mundo civilizado nos confins das Minas Gerais, com comportamento eremita e excêntrico. Para outros, um inovador em diversas áreas, que ousou propor teorias polêmicas e foi ativo até o final da vida, em contato constante com a comunidade científica de seu tempo.



Capaz de inspirar interpretações tão antagônicas, o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund foi um dos muitos cientistas estrangeiros que vieram ao Brasil nos anos que se seguiram à transferência da corte portuguesa, em 1808, dispostos a desbravar a riqueza natural dos trópicos. Aos 24 anos, já era graduado em medicina e letras em Copenhague quando desembarcou no Novo Mundo, em dezembro de 1825, para realizar pesquisas no campo da história natural. Nessa primeira estada, concentrou-se nos estudos botânicos e zoológicos nos arredores do Rio de Janeiro. Chegara a exercer a atividade médica na Europa, mas desde a infância viu-se seduzido pelos estudos da natureza. Copenhague, no século XIX, era conhecida como a Atenas do Norte devido à sua grande efervescência cultural e científica. Lund não passou imune a esse momento. Foi o primeiro membro de uma tradicional família de comerciantes a seguir carreira acadêmica e científica.

Em 1829 retornou à Europa, publicou obras, inseriu-se na comunidade científica mundial e poderia ter permanecido por lá pesquisando a rica coleção que levara do Brasil. Mas quatro anos depois decidiu voltar à América. Associou-se ao botânico alemão Ludwig Riedel (1790-1861) e juntos percorreram diversos estados, coletando e analisando a flora tropical. Em Curvelo, Minas Gerais, uma coincidência mudou os planos de Peter Lund: outro Peter, também dinamarquês, cruzou seu caminho. Peter Claussen era fazendeiro na região e lhe apresentou a riqueza fóssil do interior das cavernas mineiras.

“Meus companheiros permaneceram durante muito tempo mudos à entrada deste templo; depois, involuntariamente, se ajoelharam e, persignando-se, exclamaram, diversas vezes: ‘Milagre! Deus é grande!’. Foi-me impossível dissuadi-los da ideia de que este templo devia servir de morada a Nosso Senhor. Quanto a mim, confesso que nunca meus olhos viram nada mais belo e magnífico nos domínios da natureza e da arte”, relatou Lund, ao descrever sua visita à Gruta de Maquiné. Sua trajetória pessoal e profissional mudou de rumo a partir desse encontro com as entranhas da Terra e seus segredos.

Foi também em Curvelo que Lund conheceu aquele que seria seu auxiliar e companheiro por toda a vida: o norueguês Peter Andreas Brandt (1792-1862), responsável pela maior parte das ilustrações das coleções, cavernas e paisagens que explorou. Mais tarde, Lund se separou de Riedel e de Claussen, mas nunca foi capaz de se afastar do solo mineiro. Riedel teve problemas de saúde e decidiu interromper a expedição, retornando ao Rio de Janeiro. Quanto a Claussen, Lund queixou-se diversas vezes de atitudes “desonestas” que o teriam prejudicado profissionalmente. Embora também conhecesse as potencialidades científicas dos fósseis, o compatriota tinha explícito interesse financeiro na exploração das cavernas, vendendo os fósseis encontrados aos museus europeus.

Em outubro de 1835, Lund partiu de Curvelo rumo ao Arraial de Nossa Senhora da Saúde de Lagoa Santa, um pequeno povoamento de cerca de 60 casas. Precisava de uma base permanente para explorar as cavernas da região, trabalho ao qual dedicaria os próximos dez anos de sua vida, coletando e estudando fósseis. Assim, revelaria ao mundo à pré-história brasileira. Estudou a fauna de mamíferos da região do Vale do Rio das Velhas, as peculiaridades de sua população, os achados arqueológicos, as formações geomorfológicas e botânicas, as pinturas rupestres. Contribuiu para estudos de outros cientistas que acolheu e orientou, como Eugen Warming (1841-1924), fundador da fitoecologia mundial.

Era um momento de grandes mudanças no cenário científico mundial. Lund foi contemporâneo do maior evolucionista e do maior catastrofista da história – Charles Darwin (1809-1882) e Georges Cuvier (1769-1832) – e sofreu influência de ambos: em alguns trabalhos demonstra adesão à interpretação catastrofista, em outros, uma abertura para a constatação de sinais da evolução. Comprometido com a técnica científica e o seu rigor, era capaz de mudar o rumo de sua vida e de suas pesquisas sempre que instigado ou quando constatada a sua necessidade.

Durante escavações, Lund encontrou na Gruta do Sumidouro fósseis humanos na mesma escala geológica e no mesmo estado de fossilização de antigos animais extintos, provando que viveram na mesma época e que a ocupação da América era bastante remota. Ao estudar os fósseis humanos, percebeu características que os diferenciavam da raça mongólica – que teria dado origem aos indígenas sul-americanos. Diante disso, propôs que aqui os humanos teriam coexistido com os gigantescos mamíferos extintos e que uma população diferente dos primitivos indígenas americanos havia ocupado o Brasil nos tempos remotos. Essas ideias foram levantadas por Lund em meados do século XIX e ainda hoje ocupam a pauta de discussão de cientistas que se debruçam sobre sua obra, sua coleção de fósseis e os sítios arqueológicos que apresentou ao mundo.

Após divulgar conclusões tão polêmicas, em 1845 Lund deu por encerradas suas atividades exploratórias nas cavernas, enviou sua coleção para a Dinamarca e doou algumas peças ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Mas decidiu permanecer em Lagoa Santa, onde ficou até a sua morte, em 1880, jamais retornando à Europa. Essa decisão provocou a imaginação coletiva e muitas têm sido as hipóteses para explicá-la: saúde debilitada, dificuldades financeiras, receio de retornar ao cenário científico europeu depois de tão longo afastamento, crise existencial diante de seus achados científicos ou o simples gosto de viver no interior do Brasil.

Lund demonstrou ser um homem que não temia mudanças e desafios. Rompeu a tradição familiar de grandes comerciantes e seguiu a carreira acadêmica; abandonou a promissora profissão médica para praticar a história natural; deixou de se dedicar à zoologia e à botânica para penetrar em um novo campo de pesquisa: a paleontologia. Mais tarde, teve a coragem de se desvencilhar da coleção de fósseis que lhe custou tantos anos de árduo trabalho para exercer outras formas de atividade científica.

Ao contrário do que se pode imaginar, sua vida cotidiana em Lagoa Santa era bastante movimentada. Atendia à população local como médico, dava aulas às crianças da comunidade e criou a banda de música Santa Cecília, doando-lhe os instrumentos e ensinando fundamentos musicais aos seus componentes. Era constantemente consultado sobre os mais diversos assuntos, pois todos o tinham como uma referência de sabedoria. A cidade tornou-se ponto de parada de inúmeros viajantes e cientistas estrangeiros que buscavam um encontro com o reconhecido dinamarquês.

Lund não se casou, nem se tem notícia confiável sobre envolvimentos amorosos que tenha mantido no Brasil. Também não teve filhos, mas educou Nerêo Cecílio dos Santos – o filho de um de seus empregados – como um pai. Nerêo teve uma educação refinada, aprendeu vários idiomas, música, literatura e noções de História Natural. Mais tarde tornou-se um dos auxiliares do pai adotivo e, quando Lund faleceu, foi beneficiado no testamento com bens e uma pensão vitalícia.

Merecidamente reconhecido como o “Pai da Paleontologia Brasileira”, Peter Lund fez de seus achados uma fonte permanente de questionamentos sobre a história da Terra e da vida.

Ana Paula Almeida Marchesottié gestora da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte e autora de Peter Wilhelm Lund – O naturalista que revelou ao mundo a Pré-História Brasileira (E-Papers, 2011).

Catastrofista com ressalvas O Catastrofismo, teoria enunciada por Georges Cuvier (1769-1832), defende que a história da Terra foi marcada por grandes catástrofes naturais ou revoluções, responsáveis pelo extermínio da maior parte ou de todas as espécies vivas de determinadas regiões, além de terem definido o aspecto geológico atual do planeta. Posteriormente, teria havido um deslocamento de espécies de umas regiões para outras, repovoando-as. Cuvier é considerado o fundador da anatomia comparada e da paleontologia dos vertebrados.

Peter Lund era adepto do catastrofismo, mas rejeitou muitos de seus princípios à medida que encontrava provas que lhe permitiam contestar a teoria. No entanto, o uso da anatomia comparada e a ideia de extinção das espécies introduzidas por Cuvier o acompanharam por toda a vida e foram fundamentais para o aspecto inovador de seu trabalho.

Saiba mais - Bibliografia

LUND, Peter Wilhelm. Memórias sobre a Paleontologia Brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1950.

NEVES, Walter Alves & PILÓ, Luís Beethoven. O Povo de Luzia – Em busca dos primeiros americanos. São Paulo: Globo, 2008.

Filme

Bem Cultural da Rede Minas, episódio “O legado de Lund” (Rede Minas, 2012) www.youtube.com/watch?v=OxfvXBMI8wE

Internet

Blog “Trem da história”: http://tremdahistoria.blogspot.com.

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