terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Que Drummond e Lund nos iluminem

A Linha Verde tem trazido para a região em seu entorno um desenvolvimento acelerado que demanda uma série de reflexões e cuidados. Verificamos que alguns comemoram o progresso, os empregos e os lucros que virão; outros lamentam a violência e demais mazelas que inevitavelmente acompanham um desenvolvimento mal planejado. Poucos, porém, demons- tram preocupação com um de nossos maiores patrimônios: as cavernas que compõem o Carste de Lagoa Santa, suas belezas naturais e potencialidades de estudos sobre nossa História. Estas são paulatinamente destruídas e pedem socorro.

Provavelmente, a falta de "defensores" seja conseqüência do desconhecimento por parte da população do tesouro que possuímos. Ou talvez precisemos da sensibilidade e lucidez dos poetas para enxergarmos melhor o que nos cerca e valorizarmos o que realmente tem valor. Portanto, reproduzirei nesta coluna um texto do inigualável Carlos Drummond de Andrade escrito em 1974, mas que - como toda grande obra - parece ter sido escrita para nós.



Ao Dr. Lund, em seu repouso.

Cuidado, Dr. Peter Wilhelm Lund, que dorme em seu último sono em Lagoa Santa: previno-lhe que seu repouso eterno corre perigo. A região em que o senhor viveu, pesquisou e estabeleceu os fundamentos da Paleontologia Brasileira está sendo varrida pelo ciclone do desenvolvimento-acima-de-tudo, que promete acabar com as suas grutas, os seus fósseis e toda a pré-história nacional. A exploração de calcário para fabrico de cimento vai arrasar as maravilhosas formações naturais que compuseram o cenário definitivo de sua vida. Amanhã, quem sabe? Esgotados os depósitos de matéria-prima, o senhor mesmo será tecnicamente classificado como calcário de 2º grau, e do seu jazigo inscrito nos livros do Patrimônio Histórico do Brasil se fará uma fornada de cimento para novas torres redondas na Barra da Tijuca.

De resto, sei que não adianta meu aviso, sei que não adianta impedir a transformação da paisagem em cimento. Temos que viver o nosso tempo, ou, mais corretamente, morrer o nosso tempo. Quem falou aí em preservar os traços deixados pelo homem primitivo, como tarefa de sumo interesse para a compreensão da vida? Esse perdeu o seu latim - o mesmo latim de que o senhor se serviu para identificar o seu megatherium, o seu chlamidotherium, o seu glyptodon. Pois o próprio latim não acabou, no quadro da cultura geral?

Desculpe, meu sábio venerando, este chamado importuno, que nem sequer deve tê-lo acordado. Certamente já o acordara antes o tonitrom dos tratores incumbidos de devastar o solo, a vegetação e toda lembrança do mundo imemorado. A esse som nada musical sucederá outro, que o manterá desperto: o das britadeiras funcionando em ritmo de Brasil grande e apressado. O senhor perdeu o direito à paz, como de resto nós todos o perdemos, e as próprias máquinas. Fique aí quietinho em seu túmulo, enquanto se anuncia para meados de 1975 o desaparecimento da Lapa Vermelha, ou Lapinha, que era a menina-dos-seus-olhos... A Lapinha, sabe? Que vinha sofrendo a agressão dos namorados, dos torcedores de futebol, dos fotógrafos de Manchete, que nela rabiscavam inscrições bobas ou que revestiam de óleo suas pinturas, para melhor efeito de cores das reproduções, enquanto os afeitos a souvenirs furtavam lascas de estalactites e estalagmites, para se gabarem de ser proprietários de esculturas da natureza. Esse pessoal executou os serviços preliminares de desbastamento da área. Vem agora a fase sistemática de desintegração plena da Lapinha, aquela mesma em cujo recinto sombrio e rico de mistérios telúricos o senhor passeou e meditou, no itinerário do sonho para a ciência.

Prometo versejar uma elegia, quando tudo estiver consumado. É só o que posso fazer, em honra da caverna clássica e do sábio que a indicou ao zelo das novas gerações, cuidando que, no futuro, suas investigações teriam prosseguimento, e que ali se instalaria um mutirão de pesquisadores ávidos de descobrir os enigmas da Terra e do Homem. Daqui a seis anos, sabe? Passará o centenário da morte do senhor. Podemos conjeturar que até lá sua morte se desdobrará e multiplicará na morte das grutas. Então, na rasa planície, extinto o eco dos tratores, britadeiras e esteiras transportadoras de calcário, memória não haverá nem do senhor nem dos grupos alegres de turistas que começaram a demolir as criações da natureza para que outros completassem a obra. É possível que, no silêncio, ouvido mais apurado ouça aquela música sem som que se filtra entre o vazio e a ruína, a música do nada. Teremos chegado à perfeição do não-existente, àquele estado de não-ser, que até a morte se distancia. E nessa música irreal se perceberá a vaga exalação de um responso: Minas Gerais vendeu sua alma ao desenvolvimento, e deu de pinga sua pré-história.

Boa-noite, Dr. Lund.

Carlos Drummond de Andrade
(12/03/1974)


Espero que esse texto nos faça refletir sobre o que estamos fazendo (ou permitindo que se faça) com nossas maiores riquezas e nos estimule a lutar pelo que sobrou delas. Que Drummond e Lund nos ilumine!!!

Autora: Ana Paula A Marchesotti
Fonte: Revista Condomínios, v.3, abril/2007.

Ecologia Moderna: a ciência que nasceu no cerrado mineiro


Minas têm seus encantos e muitos foram os estrangeiros que sucumbiram diante deles. Abandonaram o conforto e a "civilização" européia para viverem durante anos ou por toda a vida no interior das Minas Gerais.

Coma já dizia Guimarães Rosa, Minas são muitas. A região do cerrado é uma Minas dentre tantas outras. Não tem a exuberância e beleza incontestável das florestas tropicais, no entanto, guarda segredos e riquezas que fascinam aqueles que têm a sensibilidade para descobri-los.

Alguns desbravadores do cerrado mineiro tornaram-se bastante conhecidos, como o naturalista dinamarquês Peter Lund e seu ilustrador Andréas Brandt. Convido-os agora a conhecer um pouco da história de um outro dinamarquês: Eugene Warming (1841/1924). Sei que esse nome é desconhecido para a maioria de vocês e garanto que irão se surpreender!

Warming viveu em Lagoa Santa por três anos - entre 1863 e 1866 - realizando estudos botânicos que o tornaram um marco na ciência mundial. Ao publicar sua obra "Lagoa Santa - Contribuição para a fitogeografia biológica", Warming tornou-se o Fundador da Ecologia Vegetal. Isso porque estava atento às condições de existência e não apenas às formas da flora brasileira Não é de se admirar que a Ecologia, ciência tão imprescindível no mundo moderno tenha surgido no cerrado mineiro a partir de estudos desse desconhecido dinamarquês?

Eugene Warming descobriu Lagoa Santa através de seu conterrâneo Peter Lund. Após a morte de seu auxiliar Andréas Brandt , Lund pediu a um amigo dinamarquês que lhe arranjasse um substituto. O jovem botânico foi convidado, aceitou o desafio e aos 22 anos desembarcou no Brasil rumo à longínqua Lagoa Santa. Apesar dos sacrifícios que teria que passar, era uma valiosa oportunidade de desbravar a vegetação americana.


É sempre bom lembrarmos o que representava o selvagem e desconhecido Brasil do século XIX, o inexplorado cerrado e a imprevisível aventura da viagem vivenciada por Warming e outros naturalistas deste período. As coisas mudaram muito por aqui...

Warming pretendia viver em Lagoa Santa por dois anos, tempo que achava suficiente para estudar a flora da região. Dividia seu tempo entre os estudos botânicos, expedições de coleta de plantas nos arredores da cidade e as tarefas de auxiliar o cientista Peter Lund, nesta época com seus 62 anos de idade. Esse trabalho se resumia a organizar a correspondência, escrever e ler cartas, jornais e artigos científicos recebidos por Lund, além de pequenas tarefas cotidianas. Peter Lund já havia encerrado suas expedições às cavernas e enviado sua coleção de fósseis à Dinamarca, portanto, auxiliá-lo em suas atividades ocupava pouco tempo de Eugene Warming. Ele soube aproveitar não só o tempo ocioso como também os conhecimentos de Lund a seu favor.

Lund conhecia bem a região e tinha amplos conhecimentos botânicos. Além de preciosas informações e disponibilização de livros de consulta, Lund presenteou seu auxiliar com seus escritos botânicos e seu diário da viagem empreendida entre 1833 e 1835 pelo Brasil, rico em observações sobre a vegetação brasileira. Mesmo após retornar à Dinamarca, Warming continuou em contato com Lund através de farta correspondência e envio de espécies requeridas pelo botânico.

Warming trouxe consigo uma grande novidade para a pacata Lagoa Santa: uma máquina fotográfica. Imaginem o rebuliço criado na cidade por essa recente invenção? Warming fotografou a vegetação, a cidade, figuras ilustres e também habitantes comuns de Lagoa Santa. Acredita-se que esses tenham sido os primeiros registros fotográficos desta região mineira.

Eugene Warming destacou-se na ciência mundial, ajudou a divulgar pelo mundo as maravi
lhas de Minas Gerais e eternizou imagens da nossa História e da nossa gente. Entretanto, deixou poucas marcas na memória dos mineiros tornando-o um desconhecido entre nós. Felizmente a memória não é estática. Ela é viva, dinâmica e é construída e descontruída a todo o momento pelos sujeitos históricos. Cabe a nós salvarmos a memória de Eugene Warming e tantos outros que contribuíram para sermos o que somos hoje.

Autora: Ana Paula Marchesotti
Fonte: Revista Condomínios, v.10, junho/2008

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Descobrindo os segredos e maravilhas das cavernas






Vivemos dentro ou nas proximidades do Carste de Lagoa Santa, mas muitos ainda não sabem o real significado disto. O termo Carste é conhecido internacionalmente e caracteriza um tipo peculiar de relevo constituído de rochas calcárias, drenagens e cavidades subterrâneas (cavernas). É uma região belíssima e surpreendente para os amantes da natureza; riquíssima e imprescindível para os estudiosos da trajetória dos seres vivos no planeta.

Desde tempos remotos, nativos e viajantes que passaram por aqui relataram a descoberta de ossadas primitivas no interior das cavernas. Devido ao seu tamanho monumental, acreditava-se que pertenciam a antigos moradores da região da raça de gigantes. Foi somente a partir dos estudos de Peter Lund (1801-1880) em meados do século XIX que ficou constatado tratar-se de fósseis (esqueletos e outras formas de materiais orgânicos preservados) de espécies animais e humanas já extintas. A fossilização é um fenômeno raro, pois o material orgânico só se preserva diante de condições bastante favoráveis que evitam a sua decomposição. Aí está a especificidade e a riqueza da região cárstica em que vivemos: nossas cavernas estão repletas de materiais arqueológicos e paleontológicos em excelentes estados de preservação. Muitas respostas para os maiores e mais antigos questionamentos do Homem sobre sua origem e trajetória na Terra foram e serão reveladas a partir de estudos no Carste de Lagoa Santa.

As expedições e estudos realizados nas cavernas deram origem à Espeleologia: ciência que estuda as cavernas, sua gênese, evolução, povoamento atual e passado, além das técnicas necessárias a sua exploração. Até então as cavernas eram utilizadas como abrigo, local de sepultamento ou ritual, espaço de expressão onde registravam pinturas rupestres, porém os conhecimentos a seu respeito giravam em torno de lendas e mitos. Acreditava-se, por exemplo, que os espeleotemas - aquelas maravilhosas estalactites e estalagmites que surgem do teto e do solo das cavernas formando verdadeiras cortinas naturais - cresciam como vegetais a partir de sementes. A Espeleologia trouxe um olhar cientifico e amplo sobre as cavernas abrangendo uma variedade de conhecimentos como geologia, mineralogia, geografia, biologia, paleontologia, arqueologia, zoologia, turismo e tantos outros. A nova ciência já nasceu com um caráter interdisciplinar e destruiu muitos mitos que cercavam os conhecimentos sobre as cavernas, sem tirar, contudo, seu encanto.

Édouard-Alfred Martel (1860-1938) é considerado o Fundador da Espeleologia Mundial, pois inaugurou estudos das cavernas a partir de métodos científicos. Martel foi também o responsável pela difusão do termo "Espeleologia" e de sociedades espeleológicas pelo mundo.

No Brasil, Peter Lund foi o primeiro a chamar atenção para a importância da preservação e estudo sistemático das cavernas. Alertou o governo e procurou conscientizar a população de que a exploração do salitre nas cavernas para a fabricação de pólvora estava inutilizando importantes sítios paleontológicos e arqueológicos provocando a perda irreparável de informações sobre a origem e evolução do homem, além de destruir belíssimas paisagens naturais. Infelizmente, ignorando o clamor de Lund, a ganância humana provocou ainda inúmeras depredações nas cavernas brasileiras. Ao lado do trevo de Lagoa Santa vemos uma paisagem devastada pela exploração cimenteira. Exatamente ali havia a caverna da Lapa Grande, local onde Lund encontrou os primeiros fósseis do Homem de Lagoa Santa. Esta e outras tantas cavernas foram pelos ares sem nos revelarem seus segredos e belezas!

Minas Gerais é o estado brasileiro com a maior concentração de cavernas. Quantos de vocês conhecem as nossas ricas cavernas cársticas? Não é necessário tornar-se um espeleólogo para descobrir seus encantos. Basta deixar-se fascinar pelos mistérios e belezas do mundo subterrâneo. E prepare-se para grandes emoções, pois como já dizia Peter Lund: "confesso que nunca meus olhos viram nada de mais belo e magnífico nos domínios da natureza e da arte".

Precisamos conhecer para compreender, amar e preservar.

Autora: Ana Paula Marchesotti
Fonte: Revista Condomínios, v. 11, agosto/2008

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A história que nos une


Lagoa Santa, Vespasiano, Jaboticatubas, Pedro Leopoldo, Santa Luzia, Sabará... Cidades independentes, cada qual com seus governantes e órgãos administrativos. Porém, nem sempre foi assim... Ao retrocedermos no tempo e na História dessas cidades, chegamos a uma origem e uma situação político-administrativa comum.

Até o início do século XVIII, Minas Gerais era uma parte praticamente desconhecida do território da Capitania do Rio de Janeiro e habitada por diversos povos indígenas. A ocupação do Brasil ainda estava restrita à faixa litorânea, quando os bandeirantes paulistas adentraram as terras mineiras em busca do tão sonhado ouro americano e os encontraram na última década do século XVII.

A mineração foi a responsável por atrair centenas de pessoas, fixando-as nas proximidades dos cursos d'água e fundando os primeiros arraiais de Minas Gerais. Com o tempo, alguns foram promovidos a vilas, ganhando câmaras municipais e órgãos administrativos próprios e, portanto, maior controle da metrópole portuguesa. Em 1711, já havia em Minas três vilas: Vila Rica (atual Ouro Preto); Ribeirão do Carmo (atual Mariana) e Vila Real do Sabarabuçu (atual Sabará). É em torno dessa última que está a origem de tantas outras cidades mineiras aqui citadas.

Em 1708, a região das minas foi desmembrada do Rio de Janeiro para compor a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, tornando-se a Capitania de Minas Gerais apenas em 1720. Nessa época, estava dividida em três Comarcas, cada qual com seus Arraiais, Vilas e Sede Administrativa. A Comarca do Rio das Velhas compreendia um amplo território onde hoje localizam-se mais de 20 municípios, inclusive Belo Horizonte. Posteriormente, essa comarca foi desmembrada em mais duas: Serro Frio e Paracatu. Todos os arraiais e vilas da Comarca do Rio das Velhas estavam sob a jurisdição de sua sede, a Vila de Sabará. Para lá eram enviados os tributos e de lá vinham as deliberações da Câmara e da Metrópole

Imaginem as dificuldades enfrentadas pelos moradores de arraiais tão distantes das vilas e seus órgãos administrativos? (É bom lembrarmos que a distância que nos parece relativamente pequena era percorrida em lombo de cavalos por estradas que nem mereciam essa denominação.) Diante disso, os moradores dos arraiais reivindicavam o direito de serem promovidos a vilas e muitos lutaram por isso. Esse foi o caso de Santa Luzia.

Em 1761 os moradores de Santa Luzia e arraiais vizinhos dirigiram-se ao distante Rei de Portugal pleiteando o desmembramento da Vila de Sabará para constituírem uma vila própria. Dentre os argumentos alegados estão a falta de retorno dos tributos que pagavam e as dificuldades de se manter a ordem, pois a distância e indiferença dos políticos levavam à impunidade e injustiça. (Infelizmente as coisas não mudaram muito, não é?!). Apesar do manifesto apresentar argumentos convincentes e assinaturas respeitáveis, o pedido foi negado e Santa Luzia só ganhou o título de Vila em 1847. Muitos povoados subordinados à Sabará passaram então à sua jurisdição.Esse foi o caso de Lagoa Santa, Vespasiano, Pedro Leopoldo, Jaboticatubas e muitos outros.

Com o tempo, esses Arraiais foram se desenvolvendo, passando também a reivindicar sua autonomia. Em momentos diferentes, cada um ganhou o título de Vila e, posteriormente, de cidade. Porém, apesar de percorrerem trajetórias independentes e apresentarem até disputas entre si, não podemos nos esquecer de sua origem comum.

A História tem essa capacidade de nos levar às origens, à reflexão de nossa identidade e à UNIÃO. Com tantas coisas para conquistarmos e mudarmos ao nosso redor, nada melhor do que relembrarmos o passado de sonho e luta que uniu os povos ao longo do Rio das Velhas. Independente de morarmos em Condomínio ou no centro da cidade; em Santa Luzia, Lagoa Santa ou Jaboticatubas; precisamos nos unir em torno de projetos sociais, econômicos, ambientais e culturais que abarquem toda a antiga Comarca do Rio das Velhas. Sei que neste mundo segmentado, especializado e individua-lista, isso parece pura utopia. Mas há algo mais belo e transformador que a Utopia?

Autora: Ana Paula A. Marchesotti
Fonte: Revista Condomínios, v.1,dez/2006

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Conheça um pouco da História da Maria Fumaça...

Dominar ou preservar a natureza:o dilema histórico do homem

Ao presenciarmos tantas pessoas fugindo das grandes cidades e refugiando-se entre árvores, jardins e animais, imaginamos ser essa uma busca constante do ser humano. Porém, a História nos mostra que a relação do homem com a natureza passou por várias mudanças ao longo do tempo e o sentimento que permeou essa relação foi às vezes de animosidade, temor e disputa.

Há alguns séculos atrás a idéia de impedir o desmatamento e a caça predatória pareceria absurda. A visão predominante defendia que o mundo fora criado para beneficiar o homem e que as outras espécies deveriam subordinar-se aos seus desejos e necessidades. A Bíblia reforçava essa idéia - sobretudo no livro do Gênesis - e a tradição cristã se opôs à veneração à natureza presente em cultos antigos e religiões orientais. Também a ciência ajudou a propagar essa idéia defendendo a necessidade de se conhecer profundamente a natureza para, assim, melhor dominá-la e utilizá-la a serviço da vida humana.

Criou-se uma fronteira clara entre o homem e os demais seres vivos, pois assim justificava-se toda e qualquer forma de extermínio e domesticação. Os homens estariam acima da natureza e poderiam usufruir dela a seu bel prazer.

Em fins do século XVII essa visão antropocêntrica - o homem como centro de tudo - foi ruindo e a contestação da soberania humana sobre a fauna e flora ampliou-se. Vários fatores contribuíram para esta mudança: expansão do mundo conhecido a partir do avanço da astronomia; revelação de milhares de seres desconhecidos com a introdução do microscópio; descobertas geológicas e paleontológicas sobre a real idade da Terra e de seres anteriores ao surgimento do homem. Diante dessas novas descobertas, apareceram dúvidas e hesitações quanto ao lugar do homem na natureza e sua relação com os outros seres vivos.

Despertou-se uma nova sensibilidade em relação aos animais que deveriam ser bem tratados e alguns mereceriam até um lugar especial no seio da família. Surgiram críticas quanto à domesticação, ao confinamento em zoológicos e à alimentação carnívora. Os animais eram agora vistos como criações de Deus assim como nós e teriam, portanto, direito a usufruir a vida na Terra.

Novas sensibilidades incluíram também a flora. Até o século XVIII a floresta era considerada selvagem, hostil e perigosa. Era o lar dos animais e não dos civilizados. Cabia, portanto, aos homens afastarem-se das matas ou as destruírem, já que eram obstáculos à civilização e ao progresso.

O desenvolvimento industrial e urbano trouxe consigo conseqüências nocivas à saúde dos homens e à estética do planeta, gerando um saudosismo e uma valorização do campo, das florestas e da natureza em geral. Começaram as construções de parques urbanos, cemitérios-jardins, refúgios para lazer no campo e criação de alamedas. A jardinagem não era mais uma mania dos ricos e sim um hábito generalizado. As flores não eram cultivadas apenas por suas qualidades medicinais, mas, sobretudo por suas características estéticas. As árvores eram cada vez mais valorizadas não apenas por sua utilidade, mas também por seu simbolismo. Campanhas em defesa do plantio de árvores nativas e de proteção aos animais difundiram-se e o contato direto com a natureza tornou-se uma obsessão moderna. A instalação de condomínios fechados em torno das grandes cidades fazem parte desse contexto.

O grande dilema humano da atualidade é conciliar essas novas sensibilidades e valores em relação à natureza com as exigências da modernização e do desenvolvimento econômico que ainda estão sintonizados com a antiga visão destrutiva do meio ambiente. Acredito que o primeiro passo para se mudar o mundo seja mudar o pensamento daqueles que o habitam. Partindo desse pressuposto, creio que estamos no caminho certo. Só espero que o grande dilema seja resolvido a tempo de salvar nosso planeta e todos os seus moradores, sem distinção.

Autora: Ana Paula A. Marchesotti
Fonte: Revista Condomínios, v. 4, junho/2007.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Preservação do Patrimônio Cultural: direito e dever de todos nós


"A verdadeira riqueza do patrimônio de um povo não está em seus monumentos, em suas obras de arte ou em seu saber coletivo, mas na capacidade desse povo em valorizá-los." (Antônio Sanches del Barrio)

Proponho refletirmos um pouco sobre isso. Será que realmente valorizamos nossas riquezas culturais ou estamos permitindo que ela se esvaia diante de nossos olhos? Utilizamos os canais jurídicos e democráticos disponíveis a fim de preservarmos a herança cultural deixada pelas gerações anteriores ou - por ignorância ou acomodação - permitimos que ela seja apropriada e destruída por interesses particulares?

A defesa do patrimônio cultural é um dos grandes desafios da atualidade, pois diante das velozes transformações sociais, tecnológicas, econômicas, ele corre risco iminente causando graves problemas de identidade mundial. Infeliz é o povo que perde suas raízes e referências históricas! Afinal - como já nos dizia o filósofo Sorem Kierkegaard - a vida "só pode ser vivida olhando-se para frente, mas só pode ser compreendida olhando-se para trás".

O reconhecimento universal de que a maior riqueza do planeta é sua diversidade cultural levou à formulação de inúmeras leis de proteção aos bens culturais. O mundo já tomou consciência da necessidade de colocar freios na ação devastadora que destrói a natureza e as culturas do planeta. No entanto, sabemos que o desafio não é criar novas leis e sim garantir que sejam cumpridas. Mesmo com as rigorosas leis atuais, presenciamos a cada dia o desaparecimento de nossas riquezas culturais sem que haja qualquer mobilização governamental ou popular em sua defesa.

A política de preservação do patrimônio histórico e cultural no Brasil começou durante o Governo Getúlio Vargas. Em 1937 foi promulgada a Lei do Tombamento em vigor até hoje. Foi seguida pelas Leis de proteção ao patrimônio arqueológico de 1961; às obras de arte de 1965; aos documentos e acervo bibliográfico de 1968, aos bens imateriais (manifestações culturais, saberes, celebrações,...) de 2000 e, sobretudo, pela Constituição de 1988, uma das mais modernas do mundo nesse assunto.

É interessante lembrar que o idealizador da primeira lei de proteção ao patrimônio histórico foi o modernista Mário de Andrade, criador de Macunaíma. Ao contrário dos "modernistas" atuais que pregam a destruição do "velho" e sua substituição pelo novo e, de preferência, importado, Mário de Andrade e os verdadeiros modernistas sabiam que o novo não se constrói sob o vazio, que é preciso integrar modernidade e tradição e que, mais do que relembrar o passado, é preciso aprender com ele.

Aqueles que defendem a modernização das cidades eliminando as referências do passado (traçado urbano, construções, distribuição tradicional da população, antigas tradições...) para que não impeçam o seu progresso e desenvolvimento, lamentavelmente, perderam o trem da História. Esse é um pensamento ultrapassado que marcou o fim do século XIX e início do XX. As pessoas antenadas com o nosso tempo sabem que a preservação do patrimônio cultural é hoje uma bandeira internacional por ser uma necessidade do homem moderno e que, além de não atrapalhar o desenvolvimento das cidades, pode se tornar um de seus maiores propulsores. É só lembrarmos da potencialidade do Turismo Cultural.

A comunidade é a verdadeira responsável e guardiã de seus valores e bens culturais, o que demanda uma ação mais atuante em sua defesa. Evidentemente, o Poder Público tem suas responsabilidades. Além de fiscalizar e criar medidas legais de proteção, deve incentivar, criar oportunidades de financiamento, apoiar agentes culturais, promover ações educativas que os valorizem.

Infelizmente a área cultural nunca foi uma prioridade estatal, alegando-se a necessidade de assegurar, em primeiro lugar, as necessidades básicas da população. Isso é inquestionável, pois eu jamais defenderia verbas para a cultura em detrimento da saúde, saneamento básico e outros. Porém, será que é apenas uma questão de escassez de recursos? Sinceramente, não acredito nesse discurso.

Para encerrar essa reflexão, quero lembrar um trecho de uma música dos Titãs:


A gente não quer só comida.

A gente quer comida, diversão e arte.

A gente não quer só comida

A gente quer bebida, diversão, ballet.


Nós, seres humanos, queremos e necessitamos de CULTURA.

Autora: Ana Paula A. Marchesotti
Fonte: Revista Condomínios, v.6, out/2007