segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Uai Tchê... Somos todos brasileiros!



Acabei de retornar de uma viagem à Serra Gaúcha. Além dos tradicionais pontos turísticos, procurei conhecer a população local, suas tradições genuínas (e não aquelas para turista ver) e, obviamente, a História do extremo sul do país. Uma coisa é conhecer a História por livros, outra é visitar e “respirar” o cenário da História. E eu respirei fundo...

Constatei que o Gaúcho tem muitas semelhanças com o mineiro: é acolhedor; tem uma farta, deliciosa e calórica Gastronomia; orgulha-se de sua História e Cultura. Talvez por isso tenha me sentido tão em casa! Mas quanto ao preparo para receber o turista, confesso que os gaúchos estão na nossa frente. Há uma enormidade de ofertas turísticas a preços médios e não abusivos como encontrei em outras partes do Brasil. Há oferta, mas não o irritante assédio das pessoas oferecendo seus produtos. O atendimento ao turista é sempre feito com muito respeito e qualidade, da Farmácia ao melhor restaurante da cidade. Isso faz muita diferença!

Como descendente de italiana, eu me senti bastante tocada ao conhecer as raízes da colonização europeia tão bem preservadas no Sul do país. Conheci famílias que conservam, com muito orgulho, a língua, a culinária e os hábitos italianos. Muitas preservam intactos os objetos, cartas, fotos, vestimentas, móveis e propriedades familiares por séculos e têm um enorme prazer em nos mostrar e contar Histórias e casos de família. Aprendi e me emocionei muito com essas pessoas!

Comi muito bem acompanhada de deliciosas conversas e bons vinhos e cervejas feitos artesanalmente. Visitei cidades, como Nova Petrópolis, onde se ouve o alemão na rua como se estivéssemos na Europa. Uma jovem me relatou que até ir à escola, aos sete anos, não falava Português, apenas o alemão. É muito interessante, pois são pessoas de terceira ou quarta gerações que nasceram no Brasil e jamais visitaram a Alemanha. É o poder da tradição e do orgulho de suas raízes.

Em geral conhecem a História de seus antepassados europeus profundamente, mas também a do Rio Grande do Sul. Contam com muito orgulho a História da Revolução Farroupilha (1835/1845) e como ainda hoje a comemoram anualmente, em setembro, na Semana Farroupilha. Espero um dia poder participar desses festejos.

Para quem não se lembra dessa Revolta que durou dez anos e, por pouco, não desmembrou a região Sul do restante do país, vou recordá-los. Ela faz parte da identidade cultural dos gaúchos.

Essa revolta ocorreu em um período da História do Brasil conhecido como Período Regencial, entre os reinados de D Pedro I e D Pedro II. Muitas revoltas eclodiram no país nessa época e a dos Farrapos foi uma delas.

A Revolução Farroupilha foi um conflito regional, de caráter republicano, contrário ao Governo Imperial. Os motivos da Revolta eram as insatisfações dos estancieiros do sul com o Governo Brasileiro. Sentiam-se injustiçados com os altos impostos cobrados no comércio de couro, charque e sal, produtos essenciais da economia da região na época. Em geral, sentiam-se negligenciados pelo Governo Central do Império.

Em setembro de 1835, o estancieiro Bento Gonçalves liderou um movimento que destituiu o governador da Província do Rio Grande do Sul e iniciou uma década de revoltas contra os imperialistas. Chegam a instaurar uma República no sul do país, mas terminaram rendidos em 1845 pelas tropas imperiais. Enfraquecidos, os farroupilhas aceitaram o Acordo de Paz proposto por Duque de Caxias e o Rio Grande do Sul foi reintegrado ao território brasileiro.

Confesso que acreditava que ainda hoje os sulistas fossem emancipacionistas e guardassem um sentimento de não pertencimento ao Brasil, comportando-se como uma região a parte do restante do país. Ao conhecê-los de perto e em seu habitat compreendi melhor seus valores e identidades. O gaúcho é um sujeito múltiplo de identidades e orgulha-se de suas tradições europeias, das tradições gaúchas e também de pertencerem a esse país continental e rico em diversidades.

Hoje eu me orgulho ainda mais de ser brasileira após conhecer e compreender as riquezas culturais de mais essa parte do Brasil. Que país múltiplo, plural e repleto de potencialidades o nosso!!!

OBS: Na verdade escrevi e publiquei esse artigo na Revista Bem de Vida em julho de 2013, logo após retornar do Sul. Só agora consegui disponibilizá-lo no Blog.

DINAMARQUÊS DAS CAVERNAS (Revista de História da Biblioteca Nacional)



http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/dinamarques-das-cavernas Dinamarquês das cavernas
Na vida como na obra, Peter Lund não teve medo de enfrentar o novo, e revolucionou o estudo da pré-história brasileira
Ana Paula Almeida Marchesotti

Para alguns, foi um homem arraigado a teorias científicas ultrapassadas, isolado do mundo civilizado nos confins das Minas Gerais, com comportamento eremita e excêntrico. Para outros, um inovador em diversas áreas, que ousou propor teorias polêmicas e foi ativo até o final da vida, em contato constante com a comunidade científica de seu tempo.



Capaz de inspirar interpretações tão antagônicas, o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund foi um dos muitos cientistas estrangeiros que vieram ao Brasil nos anos que se seguiram à transferência da corte portuguesa, em 1808, dispostos a desbravar a riqueza natural dos trópicos. Aos 24 anos, já era graduado em medicina e letras em Copenhague quando desembarcou no Novo Mundo, em dezembro de 1825, para realizar pesquisas no campo da história natural. Nessa primeira estada, concentrou-se nos estudos botânicos e zoológicos nos arredores do Rio de Janeiro. Chegara a exercer a atividade médica na Europa, mas desde a infância viu-se seduzido pelos estudos da natureza. Copenhague, no século XIX, era conhecida como a Atenas do Norte devido à sua grande efervescência cultural e científica. Lund não passou imune a esse momento. Foi o primeiro membro de uma tradicional família de comerciantes a seguir carreira acadêmica e científica.

Em 1829 retornou à Europa, publicou obras, inseriu-se na comunidade científica mundial e poderia ter permanecido por lá pesquisando a rica coleção que levara do Brasil. Mas quatro anos depois decidiu voltar à América. Associou-se ao botânico alemão Ludwig Riedel (1790-1861) e juntos percorreram diversos estados, coletando e analisando a flora tropical. Em Curvelo, Minas Gerais, uma coincidência mudou os planos de Peter Lund: outro Peter, também dinamarquês, cruzou seu caminho. Peter Claussen era fazendeiro na região e lhe apresentou a riqueza fóssil do interior das cavernas mineiras.

“Meus companheiros permaneceram durante muito tempo mudos à entrada deste templo; depois, involuntariamente, se ajoelharam e, persignando-se, exclamaram, diversas vezes: ‘Milagre! Deus é grande!’. Foi-me impossível dissuadi-los da ideia de que este templo devia servir de morada a Nosso Senhor. Quanto a mim, confesso que nunca meus olhos viram nada mais belo e magnífico nos domínios da natureza e da arte”, relatou Lund, ao descrever sua visita à Gruta de Maquiné. Sua trajetória pessoal e profissional mudou de rumo a partir desse encontro com as entranhas da Terra e seus segredos.

Foi também em Curvelo que Lund conheceu aquele que seria seu auxiliar e companheiro por toda a vida: o norueguês Peter Andreas Brandt (1792-1862), responsável pela maior parte das ilustrações das coleções, cavernas e paisagens que explorou. Mais tarde, Lund se separou de Riedel e de Claussen, mas nunca foi capaz de se afastar do solo mineiro. Riedel teve problemas de saúde e decidiu interromper a expedição, retornando ao Rio de Janeiro. Quanto a Claussen, Lund queixou-se diversas vezes de atitudes “desonestas” que o teriam prejudicado profissionalmente. Embora também conhecesse as potencialidades científicas dos fósseis, o compatriota tinha explícito interesse financeiro na exploração das cavernas, vendendo os fósseis encontrados aos museus europeus.

Em outubro de 1835, Lund partiu de Curvelo rumo ao Arraial de Nossa Senhora da Saúde de Lagoa Santa, um pequeno povoamento de cerca de 60 casas. Precisava de uma base permanente para explorar as cavernas da região, trabalho ao qual dedicaria os próximos dez anos de sua vida, coletando e estudando fósseis. Assim, revelaria ao mundo à pré-história brasileira. Estudou a fauna de mamíferos da região do Vale do Rio das Velhas, as peculiaridades de sua população, os achados arqueológicos, as formações geomorfológicas e botânicas, as pinturas rupestres. Contribuiu para estudos de outros cientistas que acolheu e orientou, como Eugen Warming (1841-1924), fundador da fitoecologia mundial.

Era um momento de grandes mudanças no cenário científico mundial. Lund foi contemporâneo do maior evolucionista e do maior catastrofista da história – Charles Darwin (1809-1882) e Georges Cuvier (1769-1832) – e sofreu influência de ambos: em alguns trabalhos demonstra adesão à interpretação catastrofista, em outros, uma abertura para a constatação de sinais da evolução. Comprometido com a técnica científica e o seu rigor, era capaz de mudar o rumo de sua vida e de suas pesquisas sempre que instigado ou quando constatada a sua necessidade.

Durante escavações, Lund encontrou na Gruta do Sumidouro fósseis humanos na mesma escala geológica e no mesmo estado de fossilização de antigos animais extintos, provando que viveram na mesma época e que a ocupação da América era bastante remota. Ao estudar os fósseis humanos, percebeu características que os diferenciavam da raça mongólica – que teria dado origem aos indígenas sul-americanos. Diante disso, propôs que aqui os humanos teriam coexistido com os gigantescos mamíferos extintos e que uma população diferente dos primitivos indígenas americanos havia ocupado o Brasil nos tempos remotos. Essas ideias foram levantadas por Lund em meados do século XIX e ainda hoje ocupam a pauta de discussão de cientistas que se debruçam sobre sua obra, sua coleção de fósseis e os sítios arqueológicos que apresentou ao mundo.

Após divulgar conclusões tão polêmicas, em 1845 Lund deu por encerradas suas atividades exploratórias nas cavernas, enviou sua coleção para a Dinamarca e doou algumas peças ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Mas decidiu permanecer em Lagoa Santa, onde ficou até a sua morte, em 1880, jamais retornando à Europa. Essa decisão provocou a imaginação coletiva e muitas têm sido as hipóteses para explicá-la: saúde debilitada, dificuldades financeiras, receio de retornar ao cenário científico europeu depois de tão longo afastamento, crise existencial diante de seus achados científicos ou o simples gosto de viver no interior do Brasil.

Lund demonstrou ser um homem que não temia mudanças e desafios. Rompeu a tradição familiar de grandes comerciantes e seguiu a carreira acadêmica; abandonou a promissora profissão médica para praticar a história natural; deixou de se dedicar à zoologia e à botânica para penetrar em um novo campo de pesquisa: a paleontologia. Mais tarde, teve a coragem de se desvencilhar da coleção de fósseis que lhe custou tantos anos de árduo trabalho para exercer outras formas de atividade científica.

Ao contrário do que se pode imaginar, sua vida cotidiana em Lagoa Santa era bastante movimentada. Atendia à população local como médico, dava aulas às crianças da comunidade e criou a banda de música Santa Cecília, doando-lhe os instrumentos e ensinando fundamentos musicais aos seus componentes. Era constantemente consultado sobre os mais diversos assuntos, pois todos o tinham como uma referência de sabedoria. A cidade tornou-se ponto de parada de inúmeros viajantes e cientistas estrangeiros que buscavam um encontro com o reconhecido dinamarquês.

Lund não se casou, nem se tem notícia confiável sobre envolvimentos amorosos que tenha mantido no Brasil. Também não teve filhos, mas educou Nerêo Cecílio dos Santos – o filho de um de seus empregados – como um pai. Nerêo teve uma educação refinada, aprendeu vários idiomas, música, literatura e noções de História Natural. Mais tarde tornou-se um dos auxiliares do pai adotivo e, quando Lund faleceu, foi beneficiado no testamento com bens e uma pensão vitalícia.

Merecidamente reconhecido como o “Pai da Paleontologia Brasileira”, Peter Lund fez de seus achados uma fonte permanente de questionamentos sobre a história da Terra e da vida.

Ana Paula Almeida Marchesottié gestora da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte e autora de Peter Wilhelm Lund – O naturalista que revelou ao mundo a Pré-História Brasileira (E-Papers, 2011).

Catastrofista com ressalvas O Catastrofismo, teoria enunciada por Georges Cuvier (1769-1832), defende que a história da Terra foi marcada por grandes catástrofes naturais ou revoluções, responsáveis pelo extermínio da maior parte ou de todas as espécies vivas de determinadas regiões, além de terem definido o aspecto geológico atual do planeta. Posteriormente, teria havido um deslocamento de espécies de umas regiões para outras, repovoando-as. Cuvier é considerado o fundador da anatomia comparada e da paleontologia dos vertebrados.

Peter Lund era adepto do catastrofismo, mas rejeitou muitos de seus princípios à medida que encontrava provas que lhe permitiam contestar a teoria. No entanto, o uso da anatomia comparada e a ideia de extinção das espécies introduzidas por Cuvier o acompanharam por toda a vida e foram fundamentais para o aspecto inovador de seu trabalho.

Saiba mais - Bibliografia

LUND, Peter Wilhelm. Memórias sobre a Paleontologia Brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1950.

NEVES, Walter Alves & PILÓ, Luís Beethoven. O Povo de Luzia – Em busca dos primeiros americanos. São Paulo: Globo, 2008.

Filme

Bem Cultural da Rede Minas, episódio “O legado de Lund” (Rede Minas, 2012) www.youtube.com/watch?v=OxfvXBMI8wE

Internet

Blog “Trem da história”: http://tremdahistoria.blogspot.com.

domingo, 19 de maio de 2013

Que o Homem Francisco de Assis inspire o "Santo Padre" Francisco.






Vista da cidade de Assis

Não escolhemos nossos nomes ao nascermos, nossas famílias o fazem por nós. Os Papas têm esse poder de escolha ao serem eleitos pelo Conclave Papal para essa função. No dia 13 de março de 2013, o Cardeal Argentino Jorge Mario Bergoglio escolheu o nome Francisco para acompanhá-lo em sua missão religiosa como Papa. Esse nome é muito significativo e carrega consigo a História excepcional de um homem simples que ficou conhecido como São Francisco de Assis.

Antes de Santo, Francisco de Assis foi um homem com uma trajetória ímpar, que nos deixou belas mensagens e um exemplo de vida admirável. Francisco Bernardone nasceu em Assis (Itália) em 1181 /1182 e viveu um momento de intensas lutas sociais e políticas. Filho de comerciante de tecidos, Francisco estava próximo das camadas populares pelo nascimento, mas identificava-se com a nobreza devido à fortuna familiar. Teve infância e juventude típicas dos jovens de sua época, imitando o estilo de vida dos nobres com divertimentos como jogos, ócio, canções, poesias, guerras. Seus biógrafos relatam visões e experiências espirituais que o teriam levado à Conversão e à mudança radical de sua vida.

Francisco renunciou ao dinheiro e aos bens materiais, rompeu com a família e foi tratado como louco pela população. Após hesitações humanas, Francisco definiu seu caminho. Com cerca de 26 anos, tornou-se um missionário e fez nascer os franciscanos que percorriam estradas, aldeias e cidades pregando e cuidando dos pobres e doentes. Sua conduta anticonsumista radical, defensor da natureza e todas as suas criaturas, da simplicidade, da alegria, da igualdade e da vida comunitária causava muito estranhamento e resistência. Os franciscanos eram considerados loucos que - em um momento de grande desenvolvimento medieval - pregavam o desapego aos bens materiais e o respeito a todos os elementos e seres da natureza como irmãos.

Francisco decide, então, procurar o Papa a fim de obter aprovação oficial aos seus hábitos e direcionamentos religiosos, o que obteve apenas parcialmente. Havia uma desconfiança papal quanto aos estranhos franciscanos e, por pouco, estes não foram considerados hereges e expulsos da Igreja. Quem diria que séculos mais tarde um Papa escolheria seu nome e pregaria alguns de seus hábitos de simplicidade e atenção aos mais pobres?

Após anos de pregações, caridade e exemplo de vida simples e alegre em comunidade e sintonia com as criaturas da natureza, Francisco de Assis morreu em 1226 com o agravamento de doenças que o perseguiram por toda a vida (problemas de visão e no sistema digestivo). Santa Clara – rica jovem de Assis que, comovida com as palavras de Francisco, fugiu de casa e se uniu a ele na pregação a uma vida mais simples e de caridade – cuidou dele em seu padecimento final. Em torno de Francisco moribundo criou-se uma vigília de cobiça por seu santo cadáver e uma guarda armada o protegeu em seus últimos dias de vida. Rapidamente a Igreja o canonizou para encerrar as controvérsias sobre esse inquietante e irreverente Santo.

Francisco de Assis foi um homem revolucionário. Pregava novidades em um tempo em que a Tradição era um valor essencial. O Cristianismo de sua época era carregado por imagens do Diabo, do pecado, das penitências, dos castigos, da tristeza. Francisco apresentou um Cristianismo alegre, leve, humano, piedoso, baseado no amor, na igualdade, na liberdade de espírito e em Deus presente em todas as coisas e seres por Ele criados. O homem histórico Francisco de Assis pregou o Novo e o Moderno através das palavras e do exemplo. Assim esperamos que faça também o Papa que escolheu seu nome.

Ana Paula Marchesotti PUBLICADO NA REVISTA BEM DE VIDA, N. 39, ABRIL/ MAIO 2013.



Túmulo de Francisco de Assis.

O filho de Peter W Lund.





O interesse pela vida privada das ditas “celebridades” é uma marca do mundo contemporâneo. O cientista dinamarquês Peter W Lund, com sua personalidade excêntrica, metódica e pacata, não escapou aos questionamentos sobre sua vida amorosa e familiar.

A vida privada de Peter Lund - diferentemente de sua trajetória profissional - não foi marcada por grandes aventuras, surpresas e emoções. Lund nunca se casou, nem teve envolvimentos amorosos comprovados historicamente. Alguns biógrafos citam um romance com uma italiana durante sua permanência na Europa entre sua primeira e segunda viagem ao Brasil. Outros citam um envolvimento com as filhas do Tenente Américo Coutinho da Fonseca, próspero comerciante de Lagoa Santa.

Quanto à italiana, seu filho Nereo relatou que “Lund amou uma vez na vida, e teve desejos de se casar. Mas o amor de jovem e gentil italiana que conheceu quando viajava pela Itália, não foi forte bastante para se apossar do coração do sábio, que só pulsava pela ciência”. Não há registros de encontros ou correspondências entre Lund e sua paixão italiana.

Quanto às jovens filhas do Tenente Américo, há uma história que sobreviveu no imaginário popular. Lund teria dado aulas de piano para as três Moças - como ficaram conhecidas por nunca terem se casado. Essas teriam se apaixonado pelo dinamarquês, mas não foram correspondidas. Há uma impossibilidade prática para esse ocorrido, demonstrada por uma simples verificação documental. A mais velha das Moças - Ana Ursulina - nasceu em 21/10/1862, Flávia Domitila em 27/08/1867 e a mais nova – Maria América – em 15/10/1868. Lund já passava, portanto, da casa dos 60 anos. Houve uma convivência com a família, mas um envolvimento amoroso com as jovens era improvável.

Peter Lund não teve filhos, mas educou Nereo Cecílio dos Santos - filho de um vizinho e colaborador, Luís Cecílio - como se assim o fosse. Como nos relata o próprio Nereo, “quando fui para a companhia de Lundo tinha 12 anos de idade e o acompanhei até exalar o último suspiro, sentado à sua cabeceira, pranteando-lhe o desaparecimento.”

Lund assumiu a formação de Nereo, dando-lhe uma educação refinada que incluía vários idiomas, música, literatura e noções de História Natural. Inicialmente, pretendia enviá-lo à Europa, mas desistiu da ideia diante da resistência do garoto em se afastar da mãe. Pensou em mandá-lo ao Rio de Janeiro, mas resolveu ele mesmo assumir sua educação, pois como relatou: “me foi dada pessoalmente a oportunidade de guiar sua educação. Isso foi-me preferível por motivos morais. O Rio de Janeiro não prima como uma cidade modelo por esse ponto de vista. Também sua educação literária e científica poderia ser mais bem orientada por mim, e isso parecia-me mais importante que sua educação musical.” (Carta de Lund aos irmãos.1875)

Mais tarde, Nereo tornou-se um dos auxiliares de Lund e, quando este faleceu, foi beneficiado no testamento com bens e uma pensão vitalícia que foi estendida à sua esposa. Em carta aos seus familiares, Lund justificou sua doação a Nereo: “Até agora ele tem admirado a mim como faria a um pai. Portanto, eu penso que me deveria ser permitido cuidar dele, baseado na sua devoção filial. [...] Como as duas ocupações que ele tem aqui dão muito pouco dinheiro, ele estará em uma situação muito triste quando eu morrer. Devido à relação especial em que Deus me colocou frente a esse jovem, vocês hão de entender, sinto-me na obrigação moral de prover seu futuro bem-estar no caso de minha morte. Eu não seria capaz de descansar em paz sem isso”.

Quando o Imperador D. Pedro II visitou Lagoa Santa em 1881, Nereo o recebeu na antiga casa de Lund, como seu filho. Conversaram sobre o naturalista e fez uma apresentação musical para a comitiva real. Anos depois, Nereo escreveu uma biografia sobre seu pai adotivo (O Naturalista, Imprensa Oficial, 1923).

Posteriormente, mudou-se para Curvelo e Belo Horizonte, mas a imprensa de Lagoa Santa fez vários registros de suas visitas à cidade. Faleceu em 1922 e foi enterrado em jazido no cemitério do Bonfim.

O filho de Lund não teve uma vida brilhante e próspera como desejava seu pai, mas certamente teve uma trajetória bem diferente da que teria se não tivesse cruzado o caminho do naturalista dinamarquês. A vida de Lund, certamente, teria sido mais solitária e menos estimulante sem a presença de Nereo Cecílio.

Ana Paula Almeida Marchesotti PUBLICADO NA REVISTA BEM DE VIDA, N. 36, OUT/NOV 2012, P. 10.

Santa Casa de Misericórdia: História e desafios.





Quando tecemos elogios, críticas ou utilizamos os serviços da Santa Casa de Misericórdia não temos consciência da amplitude, princípios e natureza das ações da instituição, nem sequer de suas remotas origens históricas. Essas instituições existem há séculos e sempre exerceram um papel importante em nossa sociedade.

Existem várias Santas Casas de Misericórdia espalhadas pelo Brasil e todas têm uma origem comum: a Santa Casa de Lisboa fundada em 1498. Em sua essência, têm como princípio a prática das obras da Misericórdia compiladas por Tomás de Aquino no século XII: Dar de comer a quem tem fome; Dar de beber a quem tem sede; Vestir os nus; Visitar os doentes e presos; Dar abrigo a todos os viajantes; Resgatar os cativos; Enterrar os mortos. Portanto, as Santas Casas sempre foram muito mais do que hospitais...

No Brasil, a primeira Santa Casa de Misericórdia foi criada em Olinda (1539) e, até a Independência, mais dezesseis foram implementadas. Tinham como objetivo atender à população carente, cuidando dos enfermos em seus hospitais, alimentando os famintos, sepultando os mortos, educando os enjeitados em seus orfanatos e acolhendo os recém-nascidos abandonados na Roda dos Expostos.

A Roda dos Expostos era fixada ao muro do hospital da Santa Casa, na qual era depositada a criança indesejada. Ao girar a roda, era conduzida para dentro, sem que a identidade de quem ali a colocasse fosse revelada. As crianças eram acolhidas e educadas pela instituição. As Rodas dos Expostos foram abolidas pelo Código de Menores de 1927.

Durante o Império, as Santas Casas acompanharam algumas mudanças da sociedade e o foco passou a ser o cuidado com os enfermos e amparo à infância desvalida. Foi uma resposta ao cenário epidemiológico criado pelas epidemias do século XIX, que resultou no aumento de órfãos, mendigos e doentes.

Com a República vieram doenças como varíola e tuberculose, epidemias abrangentes que assolavam não só aos pobres, mas toda população. Nesta conjuntura, as Santas Casas, sozinhas, já não conseguiam dar resposta às crescentes necessidades da Saúde. Ao seu lado, começaram a surgir instituições puramente estatais de assistência médica. Na verdade, desde o período colonial há registros de conflitos entre as Santas Casas e os municípios, pois esses se isentavam de suas obrigações, sobrecarregando as estruturas das Santas Casas.

A legislação brasileira – diante da precariedade e insuficiência de unidades hospitalares – permite que instituições particulares sem fins lucrativos atendam uma parte do público do SUS. Este é o caso das Santas Casas de Misericórdia: instituições particulares, laicas e filantrópicas, que em muitos municípios brasileiros garantem o serviço de saúde da população através de seus hospitais.

A fonte de renda das Santas Casas de Misericórdia vinha inicialmente das doações e esmolas. A partir do século XIX essas entraram em decadência e outras surgiram: festas filantrópicas, recursos de loterias, convênios e subvenções estatais. Ao mesmo tempo, as ações voltadas para a assistência médica foram crescendo em detrimento do incremento das demais atividades.

A Santa Casa de Misericórdia de Lagoa Santa iniciou suas atividades em 2001. A demanda da cidade por um hospital era latente, assim como a impossibilidade da Prefeitura construí-lo e mantê-lo. A alternativa foi a criação de instituição privada sem fins lucrativos que pudesse efetivamente prestar esse serviço à população. Desde então, a Santa Casa focou suas atividades no atendimento hospitalar, apesar de seu Estatuto permitir outros campos de atuação.

Uma bela trajetória institucional tem sido traçada desde então, apesar dos percalços do caminho. Porém, equívocos provocados pelo desconhecimento da população são constantes. Muito se exige dessa instituição, mas sem compreensão de sua real função e responsabilidade. Por exemplo, alguns acreditam que a Santa Casa pertence à Prefeitura ou é mantida por ela; outros que o Pronto Socorro é de responsabilidade da Santa Casa. É necessário compreender que a Santa Casa de Lagoa Santa é uma entidade filantrópica administrada por voluntários e que se mantem através de convênios e parcerias. O Pronto Atendimento é de responsabilidade da Prefeitura e funciona na Santa Casa em forma de parceria.
Portanto, precisamos conhecer a história, a trajetória, os objetivos, atividades e funcionamento da nossa Santa Casa para demandarmos dela o que ela pode e deve nos oferecer com qualidade. Ao mesmo tempo, precisamos cobrar do Poder Público o que é sua responsabilidade constitucional. Mas, sobretudo, não podemos nos eximir de nossas responsabilidades cidadãs de reivindicar, fiscalizar e contribuir para que tenhamos um atendimento de qualidade. O conhecimento leva à compreensão e esta à ação necessária para a transformação da realidade.

Ana Paula Almeida Marchesotti PUBLICADO NA REVISTA BEM DE VIDA, N 38, FEV/MAR 2013, P. 10.

Eleições: algumas reflexões necessárias.



Casos de corrupção ocupam as manchetes da imprensa e a impunidade nos causa grande indignação. Porém, não podemos deixar que esse sentimento nos leve à apatia e à rejeição ao processo democrático, sobretudo com a proximidade das eleições municipais.

Pensei em escrever algumas reflexões a esse respeito e me lembrei de que há alguns anos atrás escrevi um artigo sobre esse tema na Revista Condomínios (n. 5, julho/2007). Ao lê-lo percebi que estava em plena sintonia com nossa realidade de 2012 e com o que desejava escrever. Resolvi, então, republicá-lo com algumas adaptações. Aí vai: É comum escutarmos pessoas afirmando que o Brasil não tem futuro ou que vão anular seu voto, pois todo político é corrupto e nada muda no país. Compreendo esses discursos, no entanto, sou obrigada a discordar de seus pressupostos. Ao longo da História, tivemos avanços e retrocessos no processo de construção de nossa cidadania e ainda temos uma extensa estrada a percorrer. Vamos desistir agora?

O Brasil tem quase 200 anos de história eleitoral e quantas mudanças ocorreram nesses anos! A cédula e o processo eleitoral, o direito ao voto e ao mandato político, a certeza da impunidade... As coisas mudaram muito por aqui a partir da luta de muitos brasileiros. Convido-os a conhecer ou relembrar um pouco dessa História.

A urna eletrônica faz parte do nosso dia-a-dia e poucos duvidam da legitimidade do processo eleitoral brasileiro. As cédulas de nossas primeiras eleições – ainda no Império - eram manuscritas, assinadas e levadas ao local de votação já preenchidas. As eleições ocorriam, após as missas, nas paróquias de cada localidade e aqueles que teriam direito ao voto eram identificados naquele momento por um juiz de paz. Não havia alistamento prévio, nem qualquer fiscalização no processo eleitoral. Portanto, as fraudes eram habituais e a impunidade, sequer questionada.

Mais tarde, as cédulas deixaram de ser assinadas e o voto passou a ser secreto; instituiu-se o alistamento prévio (1842); foram criados títulos de eleitor qualificando aqueles que tinham direito ao voto (1875) e “cédulas oficiais” entregues no momento da votação (1955). O processo eleitoral obteve avanços, porém permanecia controlado pela aristocracia rural brasileira (“voto de cabresto”) e marcado pelas fraudes e impunidade.

Se atualmente as pessoas têm abdicado de seu direito ao voto ou questionado sua obrigatoriedade, num passado muito recente a reivindicação era pela ampliação desse direito.

Durante todo o Império só os homens, maiores de 25 anos ( 21 anos, se casados), alfabetizados (lembre-se que o voto era assinado) e com uma renda anual de 100 mil réis podiam votar . Em 1889, a República acabou com essa exigência de renda e diminuiu a idade mínima para 21 anos, entretanto, os analfabetos e mulheres permaneceram excluídos de seu direito. As mulheres só o ganharam em 1932 e os analfabetos, em 1985. O voto facultativo para jovens de 16 e 17 anos foi introduzido em 1988.

Hoje temos no Brasil o voto universal e secreto: todos com idade acima de 16 anos. Independente de sexo, credo, cor, classe social, têm seu direito garantido por lei. Quantos reivindicaram, lutaram e até foram punidos para que conquistássemos o direito de escolher nossos governantes? Nada nos foi concedido pela benevolência da elite brasileira. Se atualmente há eleições democráticas e legítimas, devemos aos “guerreiros” brasileiros que sonharam com um país melhor e não se conformaram com a realidade que viviam.

Sei que vocês devem estar pensando: “Tudo bem...muitas coisas mudaram. Mas e a impunidade? Essa continua aí a nos indignar.” Concordo, apesar de reconhecer os avanços também nesta questão. Há alguns anos atrás, os crimes cometidos pela elite sequer eram investigados e, muito menos, divulgados. Construímos no país uma Polícia Federal ativa e autônoma; uma imprensa investigativa e dotada de liberdade de expressão; uma legislação que nos abriu algumas possibilidades de punição, apesar de extremamente insuficientes. Avançamos, mas não o bastante.

A impunidade – assim como a corrupção - precisa ser combatida. Esse é um dos desafios de nossa época. Impossível? Quantas coisas consideradas impossíveis já foram conquistadas? É fundamental lembrarmos a todo o momento que somos os agentes de nossa História e que, portanto, precisamos sair do âmbito das reclamações para o das ações.

Ana Paula Almeida Marchesotti PUBLICADO NA REVISTA BEM DE VIDA, N.35 - AGO/SET 2012, P.10.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Espírito Natalino: combustível poderoso na luta pela garantia dos Direitos Humanos



Adoro essa época do ano, o espírito contagiante do Natal e a esperança de uma realidade melhor no ano que se inicia. Pessoas individualistas passam a se preocupar com os outros; outras percebem a necessidade da união entre familiares e pessoas que se amam verdadeiramente. Sonhos de paz, igualdade e fraternidade estão nos corações ou, pelo menos, nos discursos de todos. São sentimentos poderosos e revolucionários que podem levar à transformação do mundo.

As festividades natalinas e de virada de ano potencializam o sonho por uma sociedade mais igualitária na qual os Direitos Humanos e Fundamentais da Humanidade sejam plenamente respeitados, mas que não podem ser esquecidos ao longo do ano. Leis que defendem esses direitos já existem e nasceram da experiência humana e da luta de milhares de pessoas em todo o mundo. Como afirma Norberto Bobbio: “Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.” Conhecer essa trajetória nos fortalece na continuidade da luta por um mundo mais justo.

Momentos de caos e barbárie levam a humanidade à reflexão e, muitas vezes, à ação. A II Guerra Mundial foi um desses momentos. A constatação de que o homem foi capaz de tantas atrocidades e de que seres humanos chegaram à negação completa de direitos, desencadeou um movimento em prol dos Direitos Universais do Homem que culminou na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, pela ONU. Esse documento constitui o principal marco no desenvolvimento da ideia contemporânea de Direitos Humanos e, segundo o Guinness, é o documento mais traduzido no mundo. Precisamos lutar para que seja também o mais respeitado.

Alguns Direitos Humanos antecederam e muitos vieram no bojo da Declaração Universal de 1948. Os juristas dividem os Direitos Humanos Fundamentais em Gerações. A primeira geração nasceu sob influência dos ideais da Revolução Francesa. Focam no indivíduo, em seus direitos civis e políticos: direitos à vida, à liberdade, a propriedade, à igualdade formal, às liberdades de expressão coletiva, os direitos de participação política.

A Segunda Geração surgiu com o impacto da industrialização e das graves crises sociais e econômicas que a acompanharam. São os direitos econômicos, sociais e culturais com a finalidade de obrigar o Estado a satisfazer as necessidades da coletividade: direito ao trabalho, à habitação, à saúde, à educação, ao lazer e às liberdades sociais.

Os Direitos Humanos de Terceira Geração foram desenvolvidos no século XX, compondo os direitos de interesse difuso e comum: direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao meio ambiente, à qualidade de vida, à utilização e conservação do patrimônio histórico e cultural e à comunicação. Nas últimas décadas surgiram os direitos de Quarta (direitos ligados à pesquisa genética) e Quinta Gerações (direitos ligados à cibernética.), ainda no campo da pretensão de direitos. Direitos Humanos tem um caráter universal e buscam proteger a pessoa humana em seu aspecto individual e coletivo, independente de suas preferências pessoais, sejam elas religiosas, ideológicas, partidárias, sexuais, ou de qualquer outra natureza.

Quando refletimos sobre esse conceito e o compreendemos enquanto resultado de longa luta histórica, constatamos que estamos muito longe da garantia desses direitos. Afinal, presenciamos todos os dias na imprensa notícias de fatos que demonstram sua negação. É um absurdo quando sabemos do assassinato brutal de pessoas simplesmente por morarem na rua ou terem opções religiosas e sexuais diferentes. Isso é de uma monstruosidade e uma ignorância inadmissível em pleno século XXI.

A violência provocada pela Homofobia está muito perto de nós e me causa grande indignação. O que pode levar “homens” a violentarem outros até a morte, simplesmente por terem outra opção sexual? Dados desse tipo de crime são assustadores e muitas vezes maquiados pela imprensa ao vinculá-los a outras motivações como assalto ou tráfico de drogas. Precisamos atualizar nossa legislação, criminalizando a Homofobia, assim como criminalizamos a discriminação racial.

Precisamos focar nossa luta contra a Discriminação e não contra o Preconceito. Esse último é lamentável e inconcebível em sociedades modernas e esclarecidas, porém pode ser considerado dentro do direito de livre pensamento. No entanto, não pode gerar a discriminação, pois esta é crime e fere os Direitos Fundamentais da Pessoa Humana. Alguém pode não gostar de negros, gays ou umbandistas, mas é obrigado a respeitá-los como cidadãos de direitos.

A promoção dos Direitos Humanos é uma responsabilidade do Estado e de todos nós, cidadãos. Tornemos o espírito natalino um combustível poderoso para sensibilização e ação de todos na luta contra toda e qualquer discriminação e em prol da defesa dos Direitos Humanos. Desejo um 2013 solidário, humano e justo para toda a Humanidade.

Ana Paula Almeida Marchesotti Publicado na Revista Bem de Vida, n.37,dez 2012/ jan 2013, p.10.