terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Que Drummond e Lund nos iluminem

A Linha Verde tem trazido para a região em seu entorno um desenvolvimento acelerado que demanda uma série de reflexões e cuidados. Verificamos que alguns comemoram o progresso, os empregos e os lucros que virão; outros lamentam a violência e demais mazelas que inevitavelmente acompanham um desenvolvimento mal planejado. Poucos, porém, demons- tram preocupação com um de nossos maiores patrimônios: as cavernas que compõem o Carste de Lagoa Santa, suas belezas naturais e potencialidades de estudos sobre nossa História. Estas são paulatinamente destruídas e pedem socorro.

Provavelmente, a falta de "defensores" seja conseqüência do desconhecimento por parte da população do tesouro que possuímos. Ou talvez precisemos da sensibilidade e lucidez dos poetas para enxergarmos melhor o que nos cerca e valorizarmos o que realmente tem valor. Portanto, reproduzirei nesta coluna um texto do inigualável Carlos Drummond de Andrade escrito em 1974, mas que - como toda grande obra - parece ter sido escrita para nós.



Ao Dr. Lund, em seu repouso.

Cuidado, Dr. Peter Wilhelm Lund, que dorme em seu último sono em Lagoa Santa: previno-lhe que seu repouso eterno corre perigo. A região em que o senhor viveu, pesquisou e estabeleceu os fundamentos da Paleontologia Brasileira está sendo varrida pelo ciclone do desenvolvimento-acima-de-tudo, que promete acabar com as suas grutas, os seus fósseis e toda a pré-história nacional. A exploração de calcário para fabrico de cimento vai arrasar as maravilhosas formações naturais que compuseram o cenário definitivo de sua vida. Amanhã, quem sabe? Esgotados os depósitos de matéria-prima, o senhor mesmo será tecnicamente classificado como calcário de 2º grau, e do seu jazigo inscrito nos livros do Patrimônio Histórico do Brasil se fará uma fornada de cimento para novas torres redondas na Barra da Tijuca.

De resto, sei que não adianta meu aviso, sei que não adianta impedir a transformação da paisagem em cimento. Temos que viver o nosso tempo, ou, mais corretamente, morrer o nosso tempo. Quem falou aí em preservar os traços deixados pelo homem primitivo, como tarefa de sumo interesse para a compreensão da vida? Esse perdeu o seu latim - o mesmo latim de que o senhor se serviu para identificar o seu megatherium, o seu chlamidotherium, o seu glyptodon. Pois o próprio latim não acabou, no quadro da cultura geral?

Desculpe, meu sábio venerando, este chamado importuno, que nem sequer deve tê-lo acordado. Certamente já o acordara antes o tonitrom dos tratores incumbidos de devastar o solo, a vegetação e toda lembrança do mundo imemorado. A esse som nada musical sucederá outro, que o manterá desperto: o das britadeiras funcionando em ritmo de Brasil grande e apressado. O senhor perdeu o direito à paz, como de resto nós todos o perdemos, e as próprias máquinas. Fique aí quietinho em seu túmulo, enquanto se anuncia para meados de 1975 o desaparecimento da Lapa Vermelha, ou Lapinha, que era a menina-dos-seus-olhos... A Lapinha, sabe? Que vinha sofrendo a agressão dos namorados, dos torcedores de futebol, dos fotógrafos de Manchete, que nela rabiscavam inscrições bobas ou que revestiam de óleo suas pinturas, para melhor efeito de cores das reproduções, enquanto os afeitos a souvenirs furtavam lascas de estalactites e estalagmites, para se gabarem de ser proprietários de esculturas da natureza. Esse pessoal executou os serviços preliminares de desbastamento da área. Vem agora a fase sistemática de desintegração plena da Lapinha, aquela mesma em cujo recinto sombrio e rico de mistérios telúricos o senhor passeou e meditou, no itinerário do sonho para a ciência.

Prometo versejar uma elegia, quando tudo estiver consumado. É só o que posso fazer, em honra da caverna clássica e do sábio que a indicou ao zelo das novas gerações, cuidando que, no futuro, suas investigações teriam prosseguimento, e que ali se instalaria um mutirão de pesquisadores ávidos de descobrir os enigmas da Terra e do Homem. Daqui a seis anos, sabe? Passará o centenário da morte do senhor. Podemos conjeturar que até lá sua morte se desdobrará e multiplicará na morte das grutas. Então, na rasa planície, extinto o eco dos tratores, britadeiras e esteiras transportadoras de calcário, memória não haverá nem do senhor nem dos grupos alegres de turistas que começaram a demolir as criações da natureza para que outros completassem a obra. É possível que, no silêncio, ouvido mais apurado ouça aquela música sem som que se filtra entre o vazio e a ruína, a música do nada. Teremos chegado à perfeição do não-existente, àquele estado de não-ser, que até a morte se distancia. E nessa música irreal se perceberá a vaga exalação de um responso: Minas Gerais vendeu sua alma ao desenvolvimento, e deu de pinga sua pré-história.

Boa-noite, Dr. Lund.

Carlos Drummond de Andrade
(12/03/1974)


Espero que esse texto nos faça refletir sobre o que estamos fazendo (ou permitindo que se faça) com nossas maiores riquezas e nos estimule a lutar pelo que sobrou delas. Que Drummond e Lund nos ilumine!!!

Autora: Ana Paula A Marchesotti
Fonte: Revista Condomínios, v.3, abril/2007.

Ecologia Moderna: a ciência que nasceu no cerrado mineiro


Minas têm seus encantos e muitos foram os estrangeiros que sucumbiram diante deles. Abandonaram o conforto e a "civilização" européia para viverem durante anos ou por toda a vida no interior das Minas Gerais.

Coma já dizia Guimarães Rosa, Minas são muitas. A região do cerrado é uma Minas dentre tantas outras. Não tem a exuberância e beleza incontestável das florestas tropicais, no entanto, guarda segredos e riquezas que fascinam aqueles que têm a sensibilidade para descobri-los.

Alguns desbravadores do cerrado mineiro tornaram-se bastante conhecidos, como o naturalista dinamarquês Peter Lund e seu ilustrador Andréas Brandt. Convido-os agora a conhecer um pouco da história de um outro dinamarquês: Eugene Warming (1841/1924). Sei que esse nome é desconhecido para a maioria de vocês e garanto que irão se surpreender!

Warming viveu em Lagoa Santa por três anos - entre 1863 e 1866 - realizando estudos botânicos que o tornaram um marco na ciência mundial. Ao publicar sua obra "Lagoa Santa - Contribuição para a fitogeografia biológica", Warming tornou-se o Fundador da Ecologia Vegetal. Isso porque estava atento às condições de existência e não apenas às formas da flora brasileira Não é de se admirar que a Ecologia, ciência tão imprescindível no mundo moderno tenha surgido no cerrado mineiro a partir de estudos desse desconhecido dinamarquês?

Eugene Warming descobriu Lagoa Santa através de seu conterrâneo Peter Lund. Após a morte de seu auxiliar Andréas Brandt , Lund pediu a um amigo dinamarquês que lhe arranjasse um substituto. O jovem botânico foi convidado, aceitou o desafio e aos 22 anos desembarcou no Brasil rumo à longínqua Lagoa Santa. Apesar dos sacrifícios que teria que passar, era uma valiosa oportunidade de desbravar a vegetação americana.


É sempre bom lembrarmos o que representava o selvagem e desconhecido Brasil do século XIX, o inexplorado cerrado e a imprevisível aventura da viagem vivenciada por Warming e outros naturalistas deste período. As coisas mudaram muito por aqui...

Warming pretendia viver em Lagoa Santa por dois anos, tempo que achava suficiente para estudar a flora da região. Dividia seu tempo entre os estudos botânicos, expedições de coleta de plantas nos arredores da cidade e as tarefas de auxiliar o cientista Peter Lund, nesta época com seus 62 anos de idade. Esse trabalho se resumia a organizar a correspondência, escrever e ler cartas, jornais e artigos científicos recebidos por Lund, além de pequenas tarefas cotidianas. Peter Lund já havia encerrado suas expedições às cavernas e enviado sua coleção de fósseis à Dinamarca, portanto, auxiliá-lo em suas atividades ocupava pouco tempo de Eugene Warming. Ele soube aproveitar não só o tempo ocioso como também os conhecimentos de Lund a seu favor.

Lund conhecia bem a região e tinha amplos conhecimentos botânicos. Além de preciosas informações e disponibilização de livros de consulta, Lund presenteou seu auxiliar com seus escritos botânicos e seu diário da viagem empreendida entre 1833 e 1835 pelo Brasil, rico em observações sobre a vegetação brasileira. Mesmo após retornar à Dinamarca, Warming continuou em contato com Lund através de farta correspondência e envio de espécies requeridas pelo botânico.

Warming trouxe consigo uma grande novidade para a pacata Lagoa Santa: uma máquina fotográfica. Imaginem o rebuliço criado na cidade por essa recente invenção? Warming fotografou a vegetação, a cidade, figuras ilustres e também habitantes comuns de Lagoa Santa. Acredita-se que esses tenham sido os primeiros registros fotográficos desta região mineira.

Eugene Warming destacou-se na ciência mundial, ajudou a divulgar pelo mundo as maravi
lhas de Minas Gerais e eternizou imagens da nossa História e da nossa gente. Entretanto, deixou poucas marcas na memória dos mineiros tornando-o um desconhecido entre nós. Felizmente a memória não é estática. Ela é viva, dinâmica e é construída e descontruída a todo o momento pelos sujeitos históricos. Cabe a nós salvarmos a memória de Eugene Warming e tantos outros que contribuíram para sermos o que somos hoje.

Autora: Ana Paula Marchesotti
Fonte: Revista Condomínios, v.10, junho/2008

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Descobrindo os segredos e maravilhas das cavernas






Vivemos dentro ou nas proximidades do Carste de Lagoa Santa, mas muitos ainda não sabem o real significado disto. O termo Carste é conhecido internacionalmente e caracteriza um tipo peculiar de relevo constituído de rochas calcárias, drenagens e cavidades subterrâneas (cavernas). É uma região belíssima e surpreendente para os amantes da natureza; riquíssima e imprescindível para os estudiosos da trajetória dos seres vivos no planeta.

Desde tempos remotos, nativos e viajantes que passaram por aqui relataram a descoberta de ossadas primitivas no interior das cavernas. Devido ao seu tamanho monumental, acreditava-se que pertenciam a antigos moradores da região da raça de gigantes. Foi somente a partir dos estudos de Peter Lund (1801-1880) em meados do século XIX que ficou constatado tratar-se de fósseis (esqueletos e outras formas de materiais orgânicos preservados) de espécies animais e humanas já extintas. A fossilização é um fenômeno raro, pois o material orgânico só se preserva diante de condições bastante favoráveis que evitam a sua decomposição. Aí está a especificidade e a riqueza da região cárstica em que vivemos: nossas cavernas estão repletas de materiais arqueológicos e paleontológicos em excelentes estados de preservação. Muitas respostas para os maiores e mais antigos questionamentos do Homem sobre sua origem e trajetória na Terra foram e serão reveladas a partir de estudos no Carste de Lagoa Santa.

As expedições e estudos realizados nas cavernas deram origem à Espeleologia: ciência que estuda as cavernas, sua gênese, evolução, povoamento atual e passado, além das técnicas necessárias a sua exploração. Até então as cavernas eram utilizadas como abrigo, local de sepultamento ou ritual, espaço de expressão onde registravam pinturas rupestres, porém os conhecimentos a seu respeito giravam em torno de lendas e mitos. Acreditava-se, por exemplo, que os espeleotemas - aquelas maravilhosas estalactites e estalagmites que surgem do teto e do solo das cavernas formando verdadeiras cortinas naturais - cresciam como vegetais a partir de sementes. A Espeleologia trouxe um olhar cientifico e amplo sobre as cavernas abrangendo uma variedade de conhecimentos como geologia, mineralogia, geografia, biologia, paleontologia, arqueologia, zoologia, turismo e tantos outros. A nova ciência já nasceu com um caráter interdisciplinar e destruiu muitos mitos que cercavam os conhecimentos sobre as cavernas, sem tirar, contudo, seu encanto.

Édouard-Alfred Martel (1860-1938) é considerado o Fundador da Espeleologia Mundial, pois inaugurou estudos das cavernas a partir de métodos científicos. Martel foi também o responsável pela difusão do termo "Espeleologia" e de sociedades espeleológicas pelo mundo.

No Brasil, Peter Lund foi o primeiro a chamar atenção para a importância da preservação e estudo sistemático das cavernas. Alertou o governo e procurou conscientizar a população de que a exploração do salitre nas cavernas para a fabricação de pólvora estava inutilizando importantes sítios paleontológicos e arqueológicos provocando a perda irreparável de informações sobre a origem e evolução do homem, além de destruir belíssimas paisagens naturais. Infelizmente, ignorando o clamor de Lund, a ganância humana provocou ainda inúmeras depredações nas cavernas brasileiras. Ao lado do trevo de Lagoa Santa vemos uma paisagem devastada pela exploração cimenteira. Exatamente ali havia a caverna da Lapa Grande, local onde Lund encontrou os primeiros fósseis do Homem de Lagoa Santa. Esta e outras tantas cavernas foram pelos ares sem nos revelarem seus segredos e belezas!

Minas Gerais é o estado brasileiro com a maior concentração de cavernas. Quantos de vocês conhecem as nossas ricas cavernas cársticas? Não é necessário tornar-se um espeleólogo para descobrir seus encantos. Basta deixar-se fascinar pelos mistérios e belezas do mundo subterrâneo. E prepare-se para grandes emoções, pois como já dizia Peter Lund: "confesso que nunca meus olhos viram nada de mais belo e magnífico nos domínios da natureza e da arte".

Precisamos conhecer para compreender, amar e preservar.

Autora: Ana Paula Marchesotti
Fonte: Revista Condomínios, v. 11, agosto/2008