terça-feira, 10 de julho de 2012

Entrevista da historiadora Ana Paula Marchesotti no Caderno PENSAR do JORNAL ESTADO DE MINAS



O cientista e seu tempo Biografia de Peter Lund é exemplo de pesquisa que evidencia o vínculo entre o paleontólogo e sua época.

João Paulo



Em sua pesquisa, Ana Paula Marchesotti faz questão de destacar a importância de Peter Lund para a ciência brasileira, mesmo sob o signo da ambigidade dos paradigmas de seu tempo. Se para muitos historiadores da ciência o trabalho do cientista dinamarquês responde por ideias que foram ultrapassadas pelo evolucionismo, nem por isso deixou de sistematizar reflexões, a partir de suas observações, que se adiantam aos conceitos da época. “Encontrei em minhas pesquisas um homem sintonizado com o pensamento científico de sua época, mas que ousou interpretações inovadoras e polêmicas”, afirma a historiadora. E completa: “Suas análises paleontológicas e teorias sobre a ocupação humana na América dialogam com pesquisas recentes sobre o tema”. Peter Lund deve muito a Lagoa Santa e região. Mas não deixou de ser uma troca justa: graças a ele, um pequeno arraial perdido no interior brasileiro se tornou uma referência para a paleontologia em todo o mundo, com repercussões ainda hoje marcantes na pesquisa da origens dos povos americanos.

Em que o trabalho de Lund responde ao conhecimento científico de seu tempo e em que ele avança e aponta novos caminhos?

Lund é muitas vezes apresentado como homem apegado a teorias ultrapassadas (catastrofismo) e que não aceitou o evolucionismo e os avanços da ciência de seu tempo. Na verdade, o que encontrei em minhas pesquisas foi um homem sintonizado com o pensamento científico de sua época, que ousou interpretações inovadoras e polêmicas. Ele relatou pela primeira vez as peculiaridades morfológicas dos povos primitivos que habitavam a região do Vale do Rio das Velhas que os diferenciavam da raça mongólica que teria dado origem aos indígenas sul-americanos. Além disso, demonstrou por suas pesquisas que esses povos primitivos coexistiram com os gigantescos mamíferos extintos, negando assim teorias de criação de sua época. Lund viveu as ambiguidades que marcaram o século 19 e contribuiu para suas mudanças.

A obra de Lund tem repercussão fora do Brasil no seu tempo?

Ele publicou o resultado de suas pesquisas no Brasil em revistas estrangeiras através de memórias, similares aos atuais artigos científicos. Porém, suas conclusões acerca das peculiaridades morfológicas dos crânios humanos foram imediatamente publicadas no Brasil, mas não na Europa.

Em que condições Peter Lund trabalhou, que dificuldades teve que superar, como era o cotidiano de um naturalista no Brasil da época?

Ele enfrentou as mesmas dificuldades que enfrentaram os naturalistas que visitaram o Brasil ao longo do século 19. As viagens eram desgastantes, imprevisíveis e perigosas. Os viajantes percorriam por meses ou anos regiões inóspitas, desconhecidas e nem sequer mapeadas. Ficavam expostos às doenças, roubos, ataques de animais e índios, intempéries climáticas e às dificuldades práticas de encontrar abrigo, auxiliares, transporte, alimentos e recursos adequados. O encontro com cenário tropical e seus “selvagens” habitantes era surpreendente e, muitas vezes, chocante. Não foi diferente o encontro Peter Lund com o sertão de Minas Gerais.

Que relação ele teve com outros cientistas e como lidava com o isolamento em seu trabalho de campo e com poucos interlocutores?

Lund certamente sofreu as consequências de viver no sertão mineiro, longe dos grandes centros científicos e culturais. Muitas vezes se queixou disso em cartas. No entanto, procurava manter-se informado do que ocorria através de revistas e jornais nacionais e estrangeiros, assídua correspondência com família, amigos, cientistas das mais diversas áreas e sociedades científicas. As frequentes visitas de viajantes estrangeiros e contratação de auxiliares estrangeiros favoreciam o diálogo com a comunidade científica internacional.

Como Lund se relacionava com a comunidade científica brasileira e europeia?

Na minha pesquisa esperava encontrar maiores vínculos de Lund com a comunidade científica brasileira. Na verdade, ele teve uma ligação institucional apenas com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no qual foi admitido como membro honorário em 1838. Durante anos manteve correspondências e publicações na Revista do IHGB e doou alguns exemplares de seu acervo de fósseis à instituição. Quanto à comunidade europeia, ele construiu uma rede de correspondentes e interlocutores durante sua viagem pelos grandes centros europeus. Mantinha frequente contato e publicações em sociedades científicas dinamarquesas e francesas, além das correspondências e visitas de cientistas de diversas nacionalidades.

Como Peter Lund lidava com o brasileiro comum, ele tinha afeição pelo Brasil e por sua gente?

Lund era considerado um excêntrico pelos brasileiros, mas também era visto como homem justo e culto. Atendia gratuitamente a população como médico, dava aulas às crianças da comunidade, criou a Banda de Música Santa Cecília doando-lhe os instrumentos e ensinando os fundamentos musicais aos seus membros. Era consultado pela população sobre os mais diversos assuntos, já que era tido como referência de sabedoria. Certamente sentia falta do contato com os cultos europeus, mas sentia-se ocupado e à vontade na sociedade mineira.

O que, em sua obra, ainda é importante para a ciência brasileira?

Cientistas das mais diversas áreas ainda se debruçam sobre seu acervo e seus escritos. Seus relatos de botânica foram fundamentais para o surgimento da fitoecologia moderna; suas descrições sobre a fauna de mamíferos da região do Vale do Rio das Velhas são uma referência para os estudos zoológicos atuais; suas observações geológicas sobre a formação das cavernas são frequentemente citadas entre geólogos e espeleólogos. Sobretudo, suas análises paleontológicas e teorias sobre a ocupação humana na América dialogam com pesquisas recentes sobre o tema.

O que, em sua avaliação, significa a opção de Lund por permanecer em Lagoa Santa até sua morte?

Muitos têm sido os motivos apontados para a permanência de Lund no Brasil depois do fim de suas escavações nas cavernas: problemas de saúde, dificuldades financeiras, conflitos existenciais decorrentes de suas descobertas, insegurança diante do isolamento cientifico a que estava fadado em Lagoa Santa, problemas de saúde, dificuldades da viagem. Possivelmente, todos esses motivos tenham contribuído para sua decisão de permanecer no Brasil, mas de forma isolada podem ser facilmente contestados. Ele já estava plenamente adaptado à vida pacata de Lagoa Santa e preferiu ficar por aqui.

Por que o interesse sobre a vida de cientistas ainda é pequeno entre nós e há tão poucas biografias?

A história das ciências só surgiu como uma disciplina independente nos Estados Unidos na segunda metade do século 19 e era escrita pelos próprios cientistas que queriam passar uma imagem de progresso da ciência. Foi sofrendo transformações no mundo e no Brasil, mas ainda tem muito espaço a conquistar. Acredito que maiores estudos e publicações sobre a história das ciências e biografias de cientistas poderão contribuir muito para a compreensão da trama sociocultural de cada época.

Lund foi personagem do romance Na trilha de Lagoa Santa, de Henrik Stangerup, já publicado no Brasil, que o coloca em meio à polêmica entre ciência e religião. Esse era um dilema real de Peter Lund? O livro de Stangerup focou muito a polêmica entre ciência e religião, tema instigante para o enredo de um romance. No entanto, não teve uma relevância tão forte na vida de Lund. Peter Lund, apesar da formação protestante, não era seguidor de nenhuma religião e se dizia “livre pensador”. Reflexões de cunho filosófico e religioso estão presentes em correspondências com o amigo de infância e bispo Peter Christian Kierkegaard (irmão do famoso filósofo Soren Kierkegaard), mas não o impediram de relatar suas descobertas e expressar conclusões científicas que contradiziam as ideias religiosas da época.



Estado de Minas - Caderno Pensar _ João Paulo 05/05/2012

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